sábado, 28 de janeiro de 2012

A descendência de Iscariotes (final)


Os olhos dele eram duas turmalinas de azul translúcido, neles podia-se por vezes surpreender sutis gradações de uma tristeza ancestral em vagas sucessivas de desespero lancinante; os cabelos, vermelho-escuros, davam a permanente impressão de terem sido despenteados por um pé de vento; na pele, muito clara, ao contrário do que seria de se esperar, não se via a profusão de sardas tão característica dos ruivos. Alto, aparentando uma juventude que os olhos desmentiam, o rapaz vestia sempre ternos em elegantes tons de preto. Alexis Von Duggu fazia o turno da noite na equipe de guarda-costas que protegia vinte e quatro sobre sete os agora ricos fundadores da Igreja Mundial dos Milagres de Deus.
Em pouco tempo, o moço de modos taciturnos ganhou a inteira confiança da Família Adams ― codinome jocoso com que os seguranças haviam apelidado os “bíblias” e seus seis filhos. Apesar da pouca idade que aparentava, os colegas da equipe respeitavam Alexis e, principalmente, temiam-no; durante uma tentativa de seqüestro ele baleara quatro homens encapuzados e armados de submetralhadoras demonstrando frieza e rapidez sobrenaturais. Os líderes da I.M.M.D. usaram toda a sua influência política para abafar o inquérito policial, que nunca chegou a elucidar a morte de um dos bandidos, encontrado sem uma gota de sangue no corpo.
Dizia-se descendente de uma antiga e decadente estirpe de nobres eslovacos, fugida para a América do Sul com a derrota do nazismo. Um arrepio geral correu pela nuca dos que o ouviram dizer que os verdadeiros Van Duggu só bebiam do seco e comiam do sangrante.

― Vocês crentes são curiosos: vêem o Diabo em todo canto, menos onde realmente está... ― Alexis mal continha a ironia quando estava a sós com Bella, o que era cada vez mais freqüente.
― O que você quer dizer?...
― Você sabe muito bem. Nesta casa onde nem Castelo Rá-Tin-Bum, nem Harry Potter podem entrar, tá aí você: se intoxicando às escondidas com essa xaroposa saga do Crepúsculo... ― sorriu, descobrindo uma linha de dentes perfeitos e brancos como uma louça de ágata.
― Não conte para os meus pais, por favor, eles não iam entender... ― Bella, aos dezessete anos, era uma adolescente pálida e depressiva que usava blusas de manga comprida no verão para ocultar as cicatrizes dos cortes de gilete que se fazia nos braços.
― Quem me parece que não entende é você, garota. Os noturnos não se comportam como nessas historinhas para urinar no colchão, são monstros que perderam a humanidade que um dia tiveram; já não têm escolha moral, a única coisa que lhes resta é continuar a destruição, o verdadeiro motor da história. Tá certo, alguns o fazem com uma certa graça...
― Eles... não... amam?...
― E o que você sabe sobre o amor? ― aproximou sua boca dos lábios trêmulos da garota, falava-lhe numa voz baixa e compassada ― Só ama quem é dividido. Sabe o que uma criatura das trevas pode ver em alguém como você? Uma presa, uma guardiã, ou outra alma maldita como ele esperando para ser libertada da vida.
― Como assim, guardiã?
― Pensa. Apesar de poderosos à noite, noturnos são vulneráveis, precisam de vigilância e proteção durante o dia... igual sua família, que precisa ser protegida noite e dia...
― Dizem que você é mais velho do que parece...
― Tenho a sua idade, dezessete; mas, como cada ano dos seus vale por sete dos meus, já são cento e dezenove anos...
― Mas daí... deve chegar um momento em que a idade dos noturnos já não tem comparação com a nossa...
― É a hora em que se perdem todos os resquícios do homem, sobra então a fera faminta.
― Sua pele... é tão branca... ― Bella acariciava o rapaz, completamente enamorada pelo estranho sedutor.
― Porfiria. Uma doença genética familiar, todas as mulheres Van Duggu sofriam de anemia. Como você, aliás...
Isabella definhava lentamente, cada dia mais pálida e enfermiça. Ninguém parecia se dar conta de que todas as noites, até o galo cantar pela última vez, o rapaz fazia barba, cabelo e bigode. Principalmente este último, já que a marca das suas presas ficava oculta sob a pelugem do monte de Vênus ― hoje em dia, parece que só as crentes e naturistas radicais não desmatam essa área.
A pobre menina apaixonada já não se sustentava em pé, passava os dias no quarto, reduzida a uma cama hospitalar de home care e alimentada via soro. Nenhum comentário acerca do seu abdome que se avolumava progressivamente. Os avós dela, assustados com a deterioração do quadro, enviaram monsenhor Amintas; nunca se sabe, argumentaram, o efeito que uma boa confissão católica é capaz de produzir. Contrariados, os pais aceitaram a visita de cortesia.
Monsenhor Amintas, antigo confessor da família de Josenaldo, não se demorou muito por lá; bastou encontrar com Alexis no corredor para saber que ali o curral tinha dono. Os dois sorriram amavelmente e se cumprimentaram, talvez mostrando um pouco demais os dentes um para o outro.
Bella entrou em coma vígil, já praticamente não se comunicava nos últimos meses. A Família Adams encontrava-se reunida no quarto dela quando a criança nasceu. Alexis limitava-se a observar a cena do seu canto, parecendo apenas levemente enfastiado. O parto aconteceu pela via natural, o bebê ostentava uma vasta cabeleira ruiva e dentes ― que usou imediatamente para sugar o que ainda restava de sangue na jovem mãe.
Em meio à estupefação geral, Alexis pegou a criança e dirigiu-se para o sótão da casa. Deixou ordens expressas para não serem incomodados nas próximas horas. O dia estava para nascer.

quinta-feira, 26 de janeiro de 2012

A descendência de Iscariotes (II)



― Irmão, isso, ligue o microfone, venha para o centro do palco e dê seu testemunho! Diga a todos, do fundo do seu coração, de quem você é, de que lado você está agora?

― Apóstolo, irmãos, eu já trilhei o caminho das trevas, eu já andei de braço dado com o Satanás! Minha vida era a pedra: fumar, aliciar, traficar, prostituir eram as minhas ocupações, larguei mulher e filhos, abandonei minha mãe e meus irmãos, troquei a noite pelo dia... só havia escuridão ao meu lado, fui morar na rua, dormia embaixo das marquises, comia restos da comida dos outros, quando comia!, passava o dia andando, mendigando, robotizei, virei zumbi...

― E o chamado, você ouviu o chamado de Cristo irmão? Assim como todos estes irmãos e irmãs aqui reunidos... e vocês, responderam ao chamado de Cristo? Não escutei, mais alto! Mais alto! Graças a Deus, louvado seja o Senhor, por que Ele está aqui conosco!

― Hoje eu vivo em Cristo, hoje sou um soldado de Deus, vivo para a obra da Igreja Mundial... irmãos, eu sou a prova de que as bênçãos são derramadas em nossas vidas, eu vi, eu senti agindo em mim e em minha vida os milagres da Profeta Marieva, e por isso posso testemunhar o poder do Espírito Santo que foi soprado na palavras do Apóstolo Josenaldo!

― Meus irmãos e minhas irmãs, não importa a profundidade do abismo, o que vale é o tamanho da fé! Posso andar pelo vale das sombras, todos podemos andar um dia!, mas, se tivermos fé, estaremos salvos, salvos! Quero ouvir de novo... maravilha, meu povo! Tenham fé, desejem a transformação, pratiquem a oração, peçam, não tenham medo de se abrir, de se despir por inteiro diante de Deus, já que Ele nos conhece por dentro e por fora, desde o fim até o começo... Vamos todos pedir a Cristo, que interceda perante o Pai por nós, que nos mantenha longe do Inimigo e suas legiões. Irmãos, o caminho do pecado é ladeira abaixo, não tem dificuldade alguma para chegar nele... o caminho do Senhor é íngreme, é subida o tempo todo, e vocês sabem por quê? Sabem? Porque virtude é força, e fazer força cansa, lutar cansa, trabalhar cansa, irmãos, sempre é mais fácil se entregar, desistir; estejam sempre atentos e ativos, portanto... Judas, o traidor, não ficou sem descendentes neste mundo cheio de crime e pecado, o exército do Iscariotes está sempre de tocaia para nos tentar. Que maior alegria pode haver do que ter o próprio Cristo nos servindo? Pois Judas, lembrem de João, o Evangelista, capítulo 13, versículo 21, Judas recebeu o pão embebido das mãos do Salvador, e mesmo assim, o Coisa-Ruim entrou nele!

É fácil apagar rastros, difícil é andar sem pisar o chão. Marieva e Josenaldo só queriam apagar um erro, por conta disso acabaram construindo um império sobre ele; uma imensa estrutura tentacular congregando milhares de pessoas em todo país e no exterior. Não tinham mais como parar o que haviam começado. Nem mesmo conseguiam parar de reproduzir, já tinham seis filhos.

Uma coincidência fez com que recaísse sobre Marieva e suas visões uma aura de santidade: houve uma mensagem dela para que o ministério de Juiz de Fora não enviasse um fretado com crentes no Pentecostes; um outro ônibus de linha saindo da cidade no mesmo horário colidiu com uma carreta a caminho de São Paulo causando trinta mortes. O pedido dizia respeito à capacidade de acomodar os fiéis, mas a versão que ficou foi a de que a santinha havia previsto o desastre.

Estes e outros fatos quetais foram responsáveis pelo rápido crescimento do empreendimento religioso; algumas iniciativas de Josenaldo mostraram-se golpes de puro instinto marqueteiro: com um pequeno investimento inicial e duas encomendas em uma fábrica de brindes, as Chaves do Céu e os Pilares do Templo, simples bricabraques de plástico comprados em massa pelo rebanho da I.M.M.D., financiaram a construção de um megatemplo para 50 mil pessoas e a aquisição do grande caça-níqueis da seita ― a fazenda onde se instalou o Retiro do Monte Tabor; local de peregrinação que todo crente deve visitar uma vez por ano e onde até o uso do banheiro é pago e reverte para os cofres da igreja.

Mas o que realmente alçou a Igreja dos Milagres aos píncaros da celebridade foi um acontecimento que dá passo às mais variadas leituras e em cujos desdobramentos o privado e o público se confundem. Onde muitos vêem crise, dificuldade, alguns poucos enxergam oportunidade. O casal de fundadores da I.M.M.D. esperava o sétimo filho, um exame médico apontou problemas sérios no feto; a opinião dos especialistas era unânime: a continuação da gravidez punha em risco mãe e bebê, recomendavam o aborto terapêutico. Desde o começo, o Apóstolo e a Profeta deram plena publicidade ao caso, principalmente à firme decisão de levar adiante a prenhez. Contra tudo e contra todos.

Foram meses de espera e vigília, de orações dos fiéis e prédicas inflamadas de Josenaldo, com os ultrassons da santinha e seu feto sendo projetados em telões nos templos ― a igreja capitalizava o fato como um reality show da fé. O risco, porém, era verdadeiro. Duas horas depois de nascer numa cesariana de urgência, o bebê morreu. Os pais dormiram aquela noite com a criança entre ambos na cama do hospital; quando o dia nasceu, mandaram vir os outros seis filhos e lhes apresentaram a irmã morta. Eles mesmo a batizaram; deram-lhe o nome de Cristina, que significa “ungida com crisma”, pois teve os óleos da devoção em sua alma e bênção em sua boca.

A segunda filha deles, Isabella, nunca mais esqueceria aquele ritual macabro que, no entanto, agradou em cheio aos que seguiam o drama. Bella tinha doze anos.


domingo, 22 de janeiro de 2012

A descendência de Iscariotes (I)


Josenaldo e Marieva cederam aos cúpidos apelos da matéria e fornicaram; antes que os unissem os santos laços do matrimônio, uniu-os a carne. Como não cai nem uma folha sem que Deus saiba, conceberam; porém, mesmo tendo sido abençoados, renegaram o fruto da sua luxúria carnal. Desprezavam assim o mais precioso fruto do barro humano, aquele que carrega em si o dom, a centelha divina ― a alma imortal. Cometeram grave ofensa ao Senhor, pois que se arrogaram o poder de dar a vida e a morte.
Mal haviam completado dezessete anos na época. Os pais de ambos, não obstante serem católicos, pressionaram para que não viesse ao mundo uma criança para ser criada por outras duas. Mesmo assim, casaram-se ao completar dezoito e, dois anos e meio depois de terem praticado o nefando crime do aborto, nascia o primeiro filho do jovem casal. Deram-lhe o nome de Enoque, aquele que foi arrebatado sem conhecer a morte.
O ressentimento deles em relação aos pais desviou-se para a confissão familiar: abandonaram a Santa Madre Igreja iniciando um período de intensa busca espiritual. Liam de tudo, o Tao Te Ching, o Livro de Mórmon, o Mahabharata, a Bíblia, os Analectos, o Popol Vuh, o Livro dos Mortos, o Corão, o Evangelho Segundo o Espiritismo, o Baghava-Gîta, o Zohar e o Universo em Desencanto. Freqüentavam, também, de tudo; convertiam-se, rebatizavam-se, iniciavam-se, meditavam, rezavam em todos os templos, corriam ceca e meca sem achar sossego.
Josenaldo trabalhava de corretor de seguros e Marieva fazia meio-período na cantina de um terreiro do Santo Daime. Até que lhes veio uma menina, Isabella.
Quando a criança foi trazida pela enfermeira para a primeira amamentação, Josenaldo dormia no sofá do quarto da maternidade. Ali, sozinha com o bebê que mamava desajeitadamente, Marieva teve a primeira visitação. Surgiu no quarto uma luz que aumentou até o aposento ficar mais iluminado do que ao meio dia; imediatamente apareceu ao lado da cama um personagem em pé, nu, flutuando acima do chão. Ele vestia apenas uma leve túnica da mais rara brancura, uma brancura que excedia qualquer coisa que havia visto, de uma radiância tão pura como não poderia haver cor terrena que fosse de tal modo branca e brilhante.
Não somente a túnica, mas toda a sua pessoa era verdadeiramente gloriosa e seu semblante refulgia como um relâmpago. O quarto estava claro, mas não tanto como ao redor do mensageiro. Ela se assustou, mas logo foi invadida por balsâmicas ondas de calma e o medo desapareceu. O anjo fez um sinal para que se mantivesse em silêncio e não acordasse nem o marido, nem o bebê; chamou-a pelo nome e disse-lhe que Deus o mandara porque ela tinha uma missão a executar, uma boa nova que deveria ser levada a todas as nações, tribos e línguas.
Falava com a doçura que há na voz dos bem-aventurados. Afirmou que voltaria a visitá-la com mais instruções do Salvador, que a escolhera para revelar a plenitude do Evangelho Eterno tal como fora entregue aos antigos habitantes e que havia se perdido ao longo da história. Após estas palavras, a luz do quarto começou a concentrar-se em torno dele e foi diminuindo gradativamente até a escuridão voltar a reinar, e então apareceu uma espécie de túnel que conduzia ao céu por onde ele ascendeu, devolvendo o quarto para o estado anterior ao surgimento da luz celestial.
Marieva começou a falar em línguas e profetizar. O Espírito Santo havia se manifestado nela. Josenaldo não perdeu tempo: organizou cultos de evangelização numa casinha cedida por seu melhor cliente e em breve nascia a Igreja Mundial dos Milagres de Deus. Os surdos passaram a ver, os cegos a ouvir, paralíticos a sentar, curas foram operadas, pais de famílias voltaram ao lar, homossexuais largaram seu vício, viciados se entregaram à fé, bandidos choraram, todos davam testemunhos emocionados e o eloqüente Apóstolo Josenaldo somava à vidência da esposa a sua presciência para os negócios.

segunda-feira, 16 de janeiro de 2012

RÉQUIEM




RÉQUIEM

Houve a dor, parada, cheia
Latejando longo tempo
E súbito esvaziou-se
Os gatos, aranhas e cobras
Silenciaram, imóveis

As velas se afogaram em leite
Sem nada para iluminar
Tua música, teus instrumentos,
jogados a um canto, perplexos

Enquanto carregavam teu esquife
Teus irmãos, guerreiros de bronze
Honrados e mudos gigantes
Com adereços de glória

Caíste em pleno vôo
Gozo pleno de tuas asas
Que no entanto, potente,
Mal experimentaras

Mudam tuas paisagens
Teu percurso, teus limites
Tua história segue o curso
Arrancado deste mapa

quarta-feira, 11 de janeiro de 2012

em 10 suaves prestações (epílogo)


― Então a senhora não sabia? Aquela região é campeã desse tipo de ocorrência, ali, já viu, tem de ficar de olho no gato e na frigideira. Ainda mais, mulher sozinha em carro sem insulfilm... ― o escrivão me atendia com uma, para mim, incompreensível má-vontade; talvez o meu caso estivesse piorando as estatísticas daquela delegacia.
― Trouxe o meu carro... se vocês quiserem dar uma olhada, sei lá, periciar...
― Periciar?! A senhora anda assistindo CSI demais, viu como é que a coisa tava lá na sala de espera? ― o subtexto era claríssimo: com tantos casos piores para dar conta, ocorrências banais se encerram com o preenchimento de um papel.
― Não tem, tipo, um álbum com fotos para reconhecimento? Quer dizer, não é que eu tenha visto grande coisa... ― pela cara que ele fez, percebi que era hora de me retirar. Estava a ponto de desacatar uma autoridade no cumprimento de suas funções, imaginem, sugerir que algo deveria ser feito.
Irmanando amigos e autoridades, e até os próprios ladrões, havia um curioso discurso convergente: melhor esquecer, pôr uma pedra em cima do assunto, já que não tinha acontecido “nada” comigo. O dinheiro era o de menos.
Bloqueei todos os cartões roubados com facilidade. O problema foi negociar o prejuízo com os bancos; só os dois cartões vinculados a conta corrente e poupança haviam sido usados para saques no valor de quinhentos reais cada. O Santander devolveu-me integralmente a quantia roubada com a apresentação do boletim de ocorrência e o extrato de movimentação. No Banco do Brasil a conversa foi bem outra.
― Olha, se a senhora quiser, dá pra preencher este formulário de solicitação de ressarcimento... mas é política do banco, senhora, precisa quitar o empréstimo primeiro.
Um detalhe: os caixas eletrônicos das agências oferecem empréstimos pré-aprovados na tela inicial dos aparelhos; de posse da senha, os seqüestradores contraíram um empréstimo de mil reais que o banco com o nome do meu país agora me dizia que não negociaria comigo. Com a metade que restava na conta (não sacada por exceder o limite diário) paguei o valor roubado, mas os quinhentos residuais seriam descontados em dez parcelas mensais da minha conta corrente.
Quem não concorda sempre pode entrar na Justiça. Consultei um amigo advogado que tratou de esvaziar meu balão.
― Difícil ganhar da União. Eles sempre recorrem, em todas as instâncias; no final, você vai ter gasto bem mais do que o valor em questão. Não compensa.
Fala-se muito da velocidade com que as relações atualmente vêm se transformando ― a célebre constatação de Marx de que no capitalismo tudo que é sólido se desmancha no ar. Talvez seja mesmo verdade, talvez a sociedade em que vivemos se encontre num processo frenético de financeirização de tudo e de todos. Tudo vira mercadoria e tudo se torna intercambiável.
Ali, dentro do carro, eu só queria que a máquina do mundo vomitasse logo o dinheiro que me resgataria do desamparo extremo em que me encontrava. Eu quis ser apenas uma caixinha que eles abrissem, tirassem o que queriam e me deixassem intacta o mais rápido que isso fosse possível. Eu queria ser apenas um número para eles ― e que eles passassem logo para o próximo número. Não queria virar notícia.
“A senhora não sabia?”, a frase do escrivão me vem à mente de tempos em tempos. Quanto mais procurava tomar atitudes práticas sobre os fatos, mais ouvia que, pragmaticamente, a melhor coisa a fazer era não fazer coisa nenhuma. Sequer posso tirar o Banco do Brasil da minha vida, porque há cursos, supervisões e grupos de estudo que realizo que só podem me pagar nessa conta.
Todas as (poucas) vezes em que ainda utilizo uma caixa eletrônica do BB, olho bem na direção da câmera filmadora que existe sobre a tela de opções e digo: “Vocês sabem mesmo por que estão me espiando?”
Tenho um amigo, também psi, que afirma que até as ditaduras são o reflexo da vontade de um povo; para ele, “tudo é desejo”. Não sei. Não desejei para mim o que me aconteceu, nem desejo pra ninguém, aliás. Se algo aprendi com tudo isto, foi que somos submetidos a dois níveis de violência mutuamente dependentes: um, mercadológico, em que a integridade corporal está diretamente em jogo; e o outro, que é a jaula cinzenta e invisível da burocracia. A burocra não é sólida nem se desmancha no ar.
A minha é uma história relativamente comum na cidade em que vivo, mas acredito que poderia acontecer na maioria das ruas, cidades e países do mundo. O que chama a atenção é a mania nacional, a compulsão creditícia, a paixão por dividir tudo em vezes no cartão.
Em que outro lugar do mundo se poderia pagar um seqüestro em dez suaves prestações?

domingo, 8 de janeiro de 2012

em 10 suaves prestações (segunda parte)


Eles se comunicavam via rádio o tempo todo; acredito que o bando devia ter uns cinco integrantes, os dois que estavam comigo no carro e mais três, talvez em motocicletas, fazendo a ‘limpa’ nos caixas eletrônicos das agências bancárias da Heitor Penteado.
― Aí, madame, tá tudo liso: deu pra sacar tudinho com seus cartões até o limite...
― Agora vocês vão me soltar?...
― Puta mina chata! Não sabe ficar na sua, é? Essas burguesinha são tudo cheia de querer ser...
― Então, dona, agora vem a parte dois: pra nóis te soltar, antes os nossos bróders vão ter que ‘fazer’ alguém em outro carro... Depois que a gente te deixar, troca, e nóis que vamo pra correria dos caixas, copiou?
Tudo somado e subtraído, aquela foi uma pequena visão de conjunto do modus operandi do florescente negócio dos seqüestros-relâmpago: sai uma, entra outra. Eles preferem as mulheres. São menos propensas a reagir violentamente; embora às vezes possam se comportar de maneira irracional, como o bandido de camiseta fez questão de me explicar. A desfaçatez era tamanha que me permitiram conhecer um aspecto do, digamos assim, fluxograma da empresa de aluguel de carros e empréstimos compulsórios que eles geriam.
Reduzida à condição de menininha assustada, experimentava agora uma sucessão de sentimentos perturbadores: em primeiro lugar, sentia-me reassegurada e quase feliz por estar nas mãos de uma organização tão sólida; eles aparentavam total segurança e destemor na execução da tarefa que se propunham. Mas o pior, o mais odioso, foi descobrir-me torcendo para que eles ‘fizessem’ um outro carro o quanto antes e me liberassem como prometido.
Lembro perfeitamente o quanto temi que a polícia frustrasse qualquer etapa da operação. Nas minhas piores fantasias ouvia um tiroteio estourando acima da minha cabeça e os meus captores fazendo de mim escudo humano contra as balas da lei.
― Mas que porra?... alô, alô, que merda que esse zé-ruela tá fazendo, alô?...
― Calma, caralho, diz pra mim, cê tá vendo ele? E o quê, como?, tá conversando dentro da agência?!
― É o cu da cobra, mano, vai vendo essa fita!
Havia algum problema. Entrei em pânico; agora os dois tinham me esquecido completamente, falavam ao mesmo tempo entre si e com os outros no nextel aos berros. Estavam muito nervosos, o carro andava mais rápido e com mais solavancos e freadas. Tive medo que um acidente piorasse tudo de vez.
Pelo que entendi, um dos comparsas da equipe externa tinha sido reconhecido numa agência pela tia dele e não conseguia se desvencilhar da senhora de modo a voltar para o ponto de encontro. Acabaram por desistir dele. E de mim.
Fui largada numa rua próxima ao CEAGESP, uma região que é uma espécie de mini-cracolândia composta de carroceiros, catadores de papelão e latinhas, e moradores de rua. Deixaram-me a bolsa, mas sem a chave do carro e o telefone; o da camisa social mandou que eu aguardasse vinte minutos agachada antes de sair do meu nicho na parte de trás do carro. Quatro e meia da tarde.
Neste ponto termina a parte Tarantino desta história Estava para começar a parte Kafka.

sábado, 7 de janeiro de 2012

em 10 suaves prestações (primeira parte)


            Hábitos são as formas concretas do ritmo, são a quota de ritmo que nos ajuda a viver ― na elegante definição de Cortázar; talvez por hábito é que não os tenha visto chegar, e mesmo quando eles já estavam demasiado próximos, ainda tenha demorado para entender a cena.
            Até que apareceu a arma. Na minha cara. Dois caras entraram no meu carro e eu fui logo entregando a chave e a bolsa, pedindo para que me deixassem ir. Ledo, e Ivo, engano.
            ― Fica pianinha e vai ficar tudo bem. Agora passa pra trás, deita no chão do carro e aguarda instruções ― era o de camisa social falando, sempre o mais calmo de todos.
            Com uma arma apontada para você, aparece uma dimensão da existência completamente nova: o instante-já, o ser-aí irremediável; uma estação onde o tempo vai e volta, em que se está vivo e está morto simultaneamente e tudo vai depender muito das suas escolhas. A vida passa a acontecer em alta definição.
            Tentei argumentar, falava qualquer coisa que me vinha à mente.
            ― Me deixa ir, por favor. Olha, estão me esperando às duas e meia, vão sentir a minha falta. Me deixa, pelo amor de...
            ― Moça, este aqui é o seu celular? Só tem um? Vou desligar. Presta atenção: vão chegar uns camaradas nossos, são parte da equipe, nós vamos entregar seus cartões para eles retirarem a grana no caixa, OK? Escreve aqui suas senhas.
            ― Me solta, por favor, eu mesma busco quanto dinheiro você quiser...
            ― Se liga, porra! Aí mina, perdeu, porra!, tu tá a menos de meio metro de uma quarenta e cinco, se meter um teco em tu, nunca que vão acabar de limpar esta caranga de pedaço seu. Tá ligada?! ― esse era o que ficou ao volante, de camiseta, o mais nervoso e ameaçador.
            ― Faz o que a gente mandar e tá suave pro teu lado; a gente liquida logo o nosso serviço e cê vai pra casa ― camisa social me passou os cartões de banco e de crédito, papel e caneta.
            Certa vez um físico, que não me lembro agora o nome, definiu de forma crua o que havia antes do universo: nada. Não havia nem o tempo. Mas então como é que alguma coisa apareceu?, perguntou o documentarista que o entrevistava. Simples, houve uma flutuação. Aparentemente, dizia ele, as coisas “flutuam” e podem existir ou deixar de existir a seu bel-prazer. Assim: flutuando.
A vida das pessoas também está assentada nesta mesma falta de consistência paradoxal, o que fazemos é edificar tudo sobre contradições e fingir que vivemos numa outra história qualquer.
Até que um dia você entra para a estatística dos seqüestros-relâmpago. E de repente parece que a sua vida anterior era um sonho; parece então, que pela primeira vez, você está completamente desperto.
― Juro pelo que há de mais sagrado: nunca usei a senha dos cartões de crédito, não saco dinheiro com eles. As senhas de banco são estas, tá aqui, ó.
― Mas que carai, bacana tem cartão pra quê, se não é par sacar?
― Calma, mano. A mina tá cooperando, não tá?, fica na manha aí e faz a tua. Então, moça, tá no caminho certo, continua abaixadinha aí que esse teu carro não é filmado. Precisa pôr...
― Vou sim, puxa, vou fazer isso mesmo. Valeu.
Rodei por horas com estes dois personagens sem rosto, que jogaram comigo o good cop/bad cop enquanto permanecia deitada em posição fetal no banco traseiro do meu carro. Não via nada, no meu campo de visão escotomizado, apenas o teto e o céu nublado lá fora. Minha profissão é escutar os outros. Sou psicanalista, tenho quarenta anos. Fui abordada na Paracuê, uma ruazinha paralela da avenida Heitor Penteado às 14 horas de uma quinta feira quando deixava uma amiga em casa depois de almoçar com ela. Só posso lhes contar o que ouvi. E o que imaginei.

quinta-feira, 5 de janeiro de 2012

Club Roma (parte final)


Voltamos para a mesa desenxabidos; ficamos por ali moscando, dois perdidos numa noite inútil. Ela, de saco na lua, eu, a magicar o que é que o Código Civil permite a nível de sacanagem com uma garota de menor; alternadamente giravam na minha cabeça três hipóteses: a) um curso avançado de anatomia em braile, b) uma gulosa, ou, c) uma bronhazinha inocente para descarregar as tensões. Embora no fundo soubesse que estava praticando a nobre arte do autoengano.
Como tudo que está ruim sempre pode piorar um pouco mais, a Vênus agora saracoteava à vera, bem na minha fuça; a dona tinha o tal de tufão nos quadris, fiquei imaginando a foda que ela devia dar. Aquilo devia deixar um cristão esfolado da silva santos. Uma semana curtido na arnica, chutando baixo. Tão embasbacado estava que nem me liguei quando a música parou.
Recobrei os sentidos quando a Pitchula se levantava para me apresentar a Vênus de Botticelli e o guarda-roupa que lhe fazia par.
― Este é o Artur...
― Boa noite. Sentem, por favor ― tentei fazer o boa-praça.
A loira aguada me mediu de alto a baixo com um risinho insolente pregado nos lábios; o brutamontes sequer nos dignou uma olhadela, permanecendo de costas para a mesa enquanto Pitchula me explicava que ele era o Campeão de PopRock.
Impressionante. O Campeão tinha um daqueles rostos esculpidos a marreta típico dos lutadores de vale-tudo; cada braço do sujeito, sem brincadeira, parecia uma coxa de bailarina do Faustão. Não é normal um camarada tão forte ser bom dançarino ― Tony Manero e Patrick Schwayze eram uns biafras perto dele.
Postas lado a lado, Pitchula e Vênus não deixavam margem nem dúvida: mãe e filha. “Minha amiga” o cacete! Pretextando ir tirar água do joelho, piquei a minha mula dali. No balcão do bar, surpresa: a Demi Moore cover tomando um mojito.
― E aí, belezura, você vem sempre aqui?
― Gatinho, esta é a pior cantada da noite, mas você está no seu dia de sorte: tô numas de curtir a rumbeira hoje. Vamos?
― Damas na frente ― afastei o banco para ela e o traseiro mais sublime daquele covil saiu rebolando só pra mim (e pra torcida do Corinthians). A banda atacou um bolerão mela-cueca. De rabo de olho ainda pude ver o bacanudo da risquinha, bebaço, levar um rola tentando sentar numa cadeira inexistente. Um comédia, como todos nós.

Lastima que seas ajena
y no pueda darte lo mejor que tengo
Lastima que llego tarde
y no tengo llave
para abrir tu cuerpo...

O globo de vidrilhos girava no teto espalhando um caleidoscópio de cores no lusco-fusco da pista de dança. E lá estava eu, apenas um rapaz latinoamericano vindo de Caieiras, o futuro grande escritor tentando salvar o dia com a ajuda das Meninas Super Poderosas. OK, a Demi Moore não era propriamente menina, mas, como Walter diria para Jack ― o Lemmon, não o Ripper ―: afinal, ninguém é perfeito...

quarta-feira, 4 de janeiro de 2012

Club Roma (parte 2)


Só que aí subiram o brilho das luzes para os músicos se instalarem e deu pra dar uma geral mais aprofundada no salão: um octógono alongado em que o palco baixo ficava do lado oposto do bar e dos toaletes, o resto era pista de dança exceto o saguão por onde chegavam as escadas e o elevador do terror. Dispostas em meia lua em torno do hall de entrada, as mesas, e nelas o alvo das minhas flechas mostrava-se bem mais variado do que supus na primeira bisolhada.
Havia uma curiosa e tácita divisão, homens de pé ou encostados ao balcão do bar, mulheres sentadas esperando; as tchutchucas nas mesas da periferia, próximo das janelas, as tiazonas bem no gargarejo, atentas ao movimento da pista. Meus piores pesadelos se confirmavam, havia um cantor na banda.

Meu Deus eu ando com sapato furado,
tenho a mania de andar engravatado,
a minha cama é um pedaço de esteira
e uma lata velha que me serve de cadeira...

A orquestra atacou logo um clássico do choro, Cabide de Molambo. Pixinga é tudo de bom. Porém, companheiros, samba é maioral, só dança quem manda muito no miudinho. Um único casal adentrou a pista: um tiozinho de sapato branco, pançudo e com a cara do Paulo Moura, trazendo pelo braço uma morena de cabelão alisado na chapinha que devia ter tido seus dias de glória nos idos do Império.
Vendo-os, sabíamos que o samba era aquilo: dançavam um feijão-com-arroz bem temperado, vez que outra uma mistura, e pimenta, somente no gingado curto. Nada de circo, zero firula e, no entanto, ninguém tirava os olhos deles.
Foi quando avistei a deusa do salão. Esplêndida, recheando um translumbrante tubinho com saia rodada em tule fúcsia; tudo no lugar: tetonas de ogiva nuclear, quadris generosos; uma Vênus de Botticelli a sair de um mar de maquiagens pesadas, dry martinis, sonhos derrocados e carnes frouxas. É verdade que tinha exagerado no Koleston, mas a loura aguada acompanhava cada música cantando baixinho como se soubesse todas de cor.
Ia me precipitar sobre o pitéu quando vi o da risca ao meio e brilhantina dar o bote nela. Paciência, hora de acionar o plano B.
Nestas horas em que a abordagem rápida é abortada costumo usar minha costumeira tática para enganar a fome e adiar a compra do único drinque que poderei ingerir a noite toda. Fui ao banheiro tomar uma água mineral da fonte de santa pia e dar uma ajeitada no visual antes de voltar para a refrega. No mictório encontrei o outro camarada do elevador, um baixinho com nariz em forma de malagueta.
― Melhor não ficar dando mole, aqui é a regra da gafieira: quem chega primeiro, leva.
― Tô de boa. Sou guerreiro, mano, quando vou pra luta vale a ideologia Van Damme: barangar sim, zerar jamais! Além do mais, deixo o primeiro milho para os pardais... seguinte, o Zimbo Trio lá só vai mandar samba?
― Sei, sei, vai dando de sabiá, que pomba leva o milho todo... a parada é trinta-trinta-trinta: meia hora de samba, meia de latinas, tá ligado?, tango, salsa, bolero, cumbia... finaliza com internacionais.
Dei um rolê em busca de outros ares, as uvas da Vênus de Botticelli estavam verdes mesmo. Autoestima é tudo. Meu sentido-aranha me avisava que muitos mancebos do pedaço haviam se banhado em Azzaro, ou até Cashmere Bouquet, lenço no bolso e cravo na lapela do terno da Colombo eram o must; abundavam o salto agulha, o brinco argolão de cigana e um luxuriante abuso do lamê e do strass.
Abeirei uma das janela, os ventiladores de hélice no teto não davam conta do abafo generalizado. Eis que de repente, não mais do que de repente, bem na mesa ao meu lado estava uma pitchulinha que era a coisa mais fofa daquela espelunca. Modelo compacto, motor 1.0, air bag promissor, ajeitadinha que só, olhava para um ponto que se situava na distância infinita do tédio que não fazia questão de esconder.
Nem dois, nem três, cheguei na chincha:
― A senhorita me daria o prazer?...
― Oi, é que... não gosto de samba ― e a pitchula abriu um sorriso de derreter as geleiras do Himalaia.
Naquele exato instante começou a seção latina da programação musical e ela me deu o segundo sorriso que era também uma doce capitulação. De caminho para a pista já peguei na mãozinha, que ela não retirou. Não era um nocaute fulminante, mas, para um primeiro round, já abria com boa pontuação e trabalhando bem na linha de cintura.

Un día iba delirando por la Plaza San Martín
vi uma cola bonita y me puse a seguirla
con las alas cortas que tienen tus ideas
con las patas cortas que tienen tus mentiras
Dónde vamos a llegar?

Junto a nós dançava o casal Paulo Moura e Morenaça do Império; ela comentou com um ar sonhador:
― Esses dois estão sempre aqui, parecem fundadores do clube...
― Hmm, então você vem sempre?
― Primeira e última; mas a minha amiga não vive sem isto... ela que me contou sobre os dois aí.
― Sua amiga? Nem reparei que você estava acompanhada... bem, agora você falando, lembro que tinha dois copos na sua mesa. Que bom que a tua amiga te trouxe, então.
Nessas, o tico e o teco acordaram e resolveram pegar no tranco. Putzgrila, pensei, será possível?, mesmo debaixo da maquiagem pesada e na meia luz do ambiente, a pitchula foi me parecendo um pouco nova demais para o rock and roll. Nessas dei com a Vênus pelo salão, grudada num cheek to cheek com um cara na penumbra; só dava pra ver uma manápula apertando os rins dela como se fossem um bilhete de loteria premiado.
― Vamos pra mesa, pode ser?, minha amiga está com o campeão de PopRock... isso vai longe...
― Bem, vamos tomar um negócio, te pago o refri ― conformei-me com o investimento da minha modesta pecúnia numa latinha dividida. Pitchula pediu uma fanta.
― Princesa, quantos aninhos você tem?
― Dezessete ― ela hesitou, ruborizou até às orelhas, e respondeu bem do sem graça.
― Ah, tá. Então são quinze, certo?
― Como é que você descobriu?
Caralhos me fodam e refodam. Tava muita esmola para o santo não desconfiar. Quase pedi para o garçom suspender a fanta.

terça-feira, 3 de janeiro de 2012

Club Roma (parte 1)


Andava a esmo pela rua buscando uma mulher, queria me convencer de que estava atrás da mulher da minha vida, mas, a bem dizer, servia qualquer uma que fizesse sombra e xixi sentada ― e não fosse sapo. Flanava pela aprazível rua Félix Guilhem prestes a cruzar a Alves Branco quando um rechonchudo e rebolativo traseiro apareceu bem na minha frente. Siga a bunda, diziam os instintos.
Uma bela caçada nos levou em direção da William Speers e atravessamos a linha de trem por uma passagem fedida e subterrânea rumo à Dronsfield; a esta altura, ela plenamente consciente de que era seguida, e eu plenamente consciente de que não tinha muito para gastar na conquista. Uma cerva, umas azeitonas no palito e rachamos o agá-ó, firmeza mina? Estratégia simples, tudo dominado.
Em frente ao Mercadão, cheguei junto. Cheguei chegando: pé na porta com cara de quem tem chá no bule. Travesti. Só de perto dava pra ver. Bom, não é a minha praia, mas quem vai a São Gonçalo, vai a Amarante, não custava trucar para ver se a manilha era copas ou zap. Resultou que a dama cobrava, gentilmente cotou para mim três tarifas diferentes para três serviços diversos.
― E com 20 mangos, linda, o que dá pra fazer?
― Compra um chicabom e volta pro Playstation, benzinho.
E saiu rebolando ainda mais, como as mulheres fazem quando sabem que as estamos olhando. O lombo era classe A, os peitos queriam saltar para fora do decote, pena que a Demi Moore com voz de Pato Donald fosse trombuda.
São as injustiças da vida: uma fachada feia muitas vezes prejudica uma bela bunda, enquanto um pequeno apêndice pode pôr a perder uma mulher, em todos os outros aspectos, impecável. Desperdício.
Mas aí me dei conta de que estava perto da rua Roma. Lembrei de uma dica quente dada por um freqüentador do pé-pra-fora que também me servia de base de operações; o lugar ficava no último andar de um hotel ali perto, Clube Roma, um baile da saudade para se dar bem com pouca bala na agulha.
O sabadão estava apenas começando, não havia motivo para desespero nem precipitação.
O hotel era uma jóia do tempo dos Afonsinhos; admirei uma vez mais a engenhosidade dos engenheiros, aquela relíquia continuar de pé era façanha digna dos arquitetos das pirâmides. O elevador chiava como um carro de bois enferrujado, balançando mais que o rabo da Demi Moore fake; ali travei papo com dois joviais rapazes que se dirigiam ao mesmo território de caça. Experientes que eram, ao menos segundo os próprios.
― Chefia, o hotel tem permanência curta... caso a gente se arranje, você me entende?... ― perguntou o de cabelo empastado e risca ao meio da cabeça.
― Pergunte na recepção ― o ascensorista, magro como um cão de rua e de rosto escrofuloso, cortou curto, falto de paciência para fazer graça com Holden Caulfields de subúrbio.
A entrada era quinze para cavalheiros, na vasca para damas. Lá se foi o meu mico-leão, apalpei no bolso a pobre garça que me sobrara calculando que só poderia tomar um refri no balcão. Mesa cobrava dez purça. Fora de questão.
Mas esqueci de me apresentar: Artur Giacomini. Vocês imaginem a cena: um xipófago de Débi & Lóide somado a mega doses de arrognância ― o fatal encontro da arrogância com a ignorância ―, ponha aí um combo de duranga econômica e financeira marinada em um molho de tempestade hormonal com baixa rodagem sexual e... aí está, o perfeito idiota de vinte anos que acredita ser a reencarnação de Arturo Bandini e confunde a Lapa de Baixo com Bunker Hill.
Naquele momento o som vinha de alto-falantes, mas um palquinho decrépito no canto do salão me fazia temer pela hipótese da música ao vivo. A atmosfera de semi-obscuridade não escondia, no entanto, os motivos da minha decepção. Virei para o da risca no meio da cabeça:
― Mano, se a gente tivesse demorado mais dez minutos essa mulherada daqui já tinha morrido!
― Quéisso velho, o negócio aqui é justamente chegar nas tiazinhas; elas dão, não embaçam, te pagam a breja e nada de hotelzinho: te levam pra casa e cozinham procê. Quer mais o quê?

...I love your tender warmth
and the way you like to dance…

Ia ser osso. Meia-nove ali não era o velho ipsilone duplo, mas a idade média do público feminino. Apalpei de novo a garça no bolso e decidi: tá no inferno, abraça o capeta.