Os olhos dele eram duas turmalinas de azul translúcido, neles podia-se por vezes surpreender sutis gradações de uma tristeza ancestral em vagas sucessivas de desespero lancinante; os cabelos, vermelho-escuros, davam a permanente impressão de terem sido despenteados por um pé de vento; na pele, muito clara, ao contrário do que seria de se esperar, não se via a profusão de sardas tão característica dos ruivos. Alto, aparentando uma juventude que os olhos desmentiam, o rapaz vestia sempre ternos em elegantes tons de preto. Alexis Von Duggu fazia o turno da noite na equipe de guarda-costas que protegia vinte e quatro sobre sete os agora ricos fundadores da Igreja Mundial dos Milagres de Deus.
Em pouco tempo, o moço de modos taciturnos ganhou a inteira confiança da Família Adams ― codinome jocoso com que os seguranças haviam apelidado os “bíblias” e seus seis filhos. Apesar da pouca idade que aparentava, os colegas da equipe respeitavam Alexis e, principalmente, temiam-no; durante uma tentativa de seqüestro ele baleara quatro homens encapuzados e armados de submetralhadoras demonstrando frieza e rapidez sobrenaturais. Os líderes da I.M.M.D. usaram toda a sua influência política para abafar o inquérito policial, que nunca chegou a elucidar a morte de um dos bandidos, encontrado sem uma gota de sangue no corpo.
Dizia-se descendente de uma antiga e decadente estirpe de nobres eslovacos, fugida para a América do Sul com a derrota do nazismo. Um arrepio geral correu pela nuca dos que o ouviram dizer que os verdadeiros Van Duggu só bebiam do seco e comiam do sangrante.
― Vocês crentes são curiosos: vêem o Diabo em todo canto, menos onde realmente está... ― Alexis mal continha a ironia quando estava a sós com Bella, o que era cada vez mais freqüente.
― O que você quer dizer?...
― Você sabe muito bem. Nesta casa onde nem Castelo Rá-Tin-Bum, nem Harry Potter podem entrar, tá aí você: se intoxicando às escondidas com essa xaroposa saga do Crepúsculo... ― sorriu, descobrindo uma linha de dentes perfeitos e brancos como uma louça de ágata.
― Não conte para os meus pais, por favor, eles não iam entender... ― Bella, aos dezessete anos, era uma adolescente pálida e depressiva que usava blusas de manga comprida no verão para ocultar as cicatrizes dos cortes de gilete que se fazia nos braços.
― Quem me parece que não entende é você, garota. Os noturnos não se comportam como nessas historinhas para urinar no colchão, são monstros que perderam a humanidade que um dia tiveram; já não têm escolha moral, a única coisa que lhes resta é continuar a destruição, o verdadeiro motor da história. Tá certo, alguns o fazem com uma certa graça...
― Eles... não... amam?...
― E o que você sabe sobre o amor? ― aproximou sua boca dos lábios trêmulos da garota, falava-lhe numa voz baixa e compassada ― Só ama quem é dividido. Sabe o que uma criatura das trevas pode ver em alguém como você? Uma presa, uma guardiã, ou outra alma maldita como ele esperando para ser libertada da vida.
― Como assim, guardiã?
― Pensa. Apesar de poderosos à noite, noturnos são vulneráveis, precisam de vigilância e proteção durante o dia... igual sua família, que precisa ser protegida noite e dia...
― Dizem que você é mais velho do que parece...
― Tenho a sua idade, dezessete; mas, como cada ano dos seus vale por sete dos meus, já são cento e dezenove anos...
― Mas daí... deve chegar um momento em que a idade dos noturnos já não tem comparação com a nossa...
― É a hora em que se perdem todos os resquícios do homem, sobra então a fera faminta.
― Sua pele... é tão branca... ― Bella acariciava o rapaz, completamente enamorada pelo estranho sedutor.
― Porfiria. Uma doença genética familiar, todas as mulheres Van Duggu sofriam de anemia. Como você, aliás...
Isabella definhava lentamente, cada dia mais pálida e enfermiça. Ninguém parecia se dar conta de que todas as noites, até o galo cantar pela última vez, o rapaz fazia barba, cabelo e bigode. Principalmente este último, já que a marca das suas presas ficava oculta sob a pelugem do monte de Vênus ― hoje em dia, parece que só as crentes e naturistas radicais não desmatam essa área.
A pobre menina apaixonada já não se sustentava em pé, passava os dias no quarto, reduzida a uma cama hospitalar de home care e alimentada via soro. Nenhum comentário acerca do seu abdome que se avolumava progressivamente. Os avós dela, assustados com a deterioração do quadro, enviaram monsenhor Amintas; nunca se sabe, argumentaram, o efeito que uma boa confissão católica é capaz de produzir. Contrariados, os pais aceitaram a visita de cortesia.
Monsenhor Amintas, antigo confessor da família de Josenaldo, não se demorou muito por lá; bastou encontrar com Alexis no corredor para saber que ali o curral tinha dono. Os dois sorriram amavelmente e se cumprimentaram, talvez mostrando um pouco demais os dentes um para o outro.
Bella entrou em coma vígil, já praticamente não se comunicava nos últimos meses. A Família Adams encontrava-se reunida no quarto dela quando a criança nasceu. Alexis limitava-se a observar a cena do seu canto, parecendo apenas levemente enfastiado. O parto aconteceu pela via natural, o bebê ostentava uma vasta cabeleira ruiva e dentes ― que usou imediatamente para sugar o que ainda restava de sangue na jovem mãe.
Em meio à estupefação geral, Alexis pegou a criança e dirigiu-se para o sótão da casa. Deixou ordens expressas para não serem incomodados nas próximas horas. O dia estava para nascer.