quarta-feira, 4 de janeiro de 2012

Club Roma (parte 2)


Só que aí subiram o brilho das luzes para os músicos se instalarem e deu pra dar uma geral mais aprofundada no salão: um octógono alongado em que o palco baixo ficava do lado oposto do bar e dos toaletes, o resto era pista de dança exceto o saguão por onde chegavam as escadas e o elevador do terror. Dispostas em meia lua em torno do hall de entrada, as mesas, e nelas o alvo das minhas flechas mostrava-se bem mais variado do que supus na primeira bisolhada.
Havia uma curiosa e tácita divisão, homens de pé ou encostados ao balcão do bar, mulheres sentadas esperando; as tchutchucas nas mesas da periferia, próximo das janelas, as tiazonas bem no gargarejo, atentas ao movimento da pista. Meus piores pesadelos se confirmavam, havia um cantor na banda.

Meu Deus eu ando com sapato furado,
tenho a mania de andar engravatado,
a minha cama é um pedaço de esteira
e uma lata velha que me serve de cadeira...

A orquestra atacou logo um clássico do choro, Cabide de Molambo. Pixinga é tudo de bom. Porém, companheiros, samba é maioral, só dança quem manda muito no miudinho. Um único casal adentrou a pista: um tiozinho de sapato branco, pançudo e com a cara do Paulo Moura, trazendo pelo braço uma morena de cabelão alisado na chapinha que devia ter tido seus dias de glória nos idos do Império.
Vendo-os, sabíamos que o samba era aquilo: dançavam um feijão-com-arroz bem temperado, vez que outra uma mistura, e pimenta, somente no gingado curto. Nada de circo, zero firula e, no entanto, ninguém tirava os olhos deles.
Foi quando avistei a deusa do salão. Esplêndida, recheando um translumbrante tubinho com saia rodada em tule fúcsia; tudo no lugar: tetonas de ogiva nuclear, quadris generosos; uma Vênus de Botticelli a sair de um mar de maquiagens pesadas, dry martinis, sonhos derrocados e carnes frouxas. É verdade que tinha exagerado no Koleston, mas a loura aguada acompanhava cada música cantando baixinho como se soubesse todas de cor.
Ia me precipitar sobre o pitéu quando vi o da risca ao meio e brilhantina dar o bote nela. Paciência, hora de acionar o plano B.
Nestas horas em que a abordagem rápida é abortada costumo usar minha costumeira tática para enganar a fome e adiar a compra do único drinque que poderei ingerir a noite toda. Fui ao banheiro tomar uma água mineral da fonte de santa pia e dar uma ajeitada no visual antes de voltar para a refrega. No mictório encontrei o outro camarada do elevador, um baixinho com nariz em forma de malagueta.
― Melhor não ficar dando mole, aqui é a regra da gafieira: quem chega primeiro, leva.
― Tô de boa. Sou guerreiro, mano, quando vou pra luta vale a ideologia Van Damme: barangar sim, zerar jamais! Além do mais, deixo o primeiro milho para os pardais... seguinte, o Zimbo Trio lá só vai mandar samba?
― Sei, sei, vai dando de sabiá, que pomba leva o milho todo... a parada é trinta-trinta-trinta: meia hora de samba, meia de latinas, tá ligado?, tango, salsa, bolero, cumbia... finaliza com internacionais.
Dei um rolê em busca de outros ares, as uvas da Vênus de Botticelli estavam verdes mesmo. Autoestima é tudo. Meu sentido-aranha me avisava que muitos mancebos do pedaço haviam se banhado em Azzaro, ou até Cashmere Bouquet, lenço no bolso e cravo na lapela do terno da Colombo eram o must; abundavam o salto agulha, o brinco argolão de cigana e um luxuriante abuso do lamê e do strass.
Abeirei uma das janela, os ventiladores de hélice no teto não davam conta do abafo generalizado. Eis que de repente, não mais do que de repente, bem na mesa ao meu lado estava uma pitchulinha que era a coisa mais fofa daquela espelunca. Modelo compacto, motor 1.0, air bag promissor, ajeitadinha que só, olhava para um ponto que se situava na distância infinita do tédio que não fazia questão de esconder.
Nem dois, nem três, cheguei na chincha:
― A senhorita me daria o prazer?...
― Oi, é que... não gosto de samba ― e a pitchula abriu um sorriso de derreter as geleiras do Himalaia.
Naquele exato instante começou a seção latina da programação musical e ela me deu o segundo sorriso que era também uma doce capitulação. De caminho para a pista já peguei na mãozinha, que ela não retirou. Não era um nocaute fulminante, mas, para um primeiro round, já abria com boa pontuação e trabalhando bem na linha de cintura.

Un día iba delirando por la Plaza San Martín
vi uma cola bonita y me puse a seguirla
con las alas cortas que tienen tus ideas
con las patas cortas que tienen tus mentiras
Dónde vamos a llegar?

Junto a nós dançava o casal Paulo Moura e Morenaça do Império; ela comentou com um ar sonhador:
― Esses dois estão sempre aqui, parecem fundadores do clube...
― Hmm, então você vem sempre?
― Primeira e última; mas a minha amiga não vive sem isto... ela que me contou sobre os dois aí.
― Sua amiga? Nem reparei que você estava acompanhada... bem, agora você falando, lembro que tinha dois copos na sua mesa. Que bom que a tua amiga te trouxe, então.
Nessas, o tico e o teco acordaram e resolveram pegar no tranco. Putzgrila, pensei, será possível?, mesmo debaixo da maquiagem pesada e na meia luz do ambiente, a pitchula foi me parecendo um pouco nova demais para o rock and roll. Nessas dei com a Vênus pelo salão, grudada num cheek to cheek com um cara na penumbra; só dava pra ver uma manápula apertando os rins dela como se fossem um bilhete de loteria premiado.
― Vamos pra mesa, pode ser?, minha amiga está com o campeão de PopRock... isso vai longe...
― Bem, vamos tomar um negócio, te pago o refri ― conformei-me com o investimento da minha modesta pecúnia numa latinha dividida. Pitchula pediu uma fanta.
― Princesa, quantos aninhos você tem?
― Dezessete ― ela hesitou, ruborizou até às orelhas, e respondeu bem do sem graça.
― Ah, tá. Então são quinze, certo?
― Como é que você descobriu?
Caralhos me fodam e refodam. Tava muita esmola para o santo não desconfiar. Quase pedi para o garçom suspender a fanta.

Nenhum comentário: