2. Heloísa
Suponhamos que fossem duas mulheres habitando o corpo de uma só; uma delas, chamemo-la Helô, mora em São Paulo numa cobertura do bairro Panamby e leva uma vida convencional ao lado do marido Gimeno, antigo colega de colégio, e do filho de oito anos, Matheus; a outra seria Isa, executiva de um banco internacional que mora em Londres com a companheira Callista. Confuso? Sim, mas para uma pessoa organizada e eficiente como Heloísa, uma vida dupla bastante possível de ser vivida e desfrutada intensamente.
Heloísa subiu por méritos próprios na hierarquia do conglomerado de empresas do Sr. X, e se tornou a darling do décimo homem mais rico do mundo quando o convenceu a transformar a financeira do grupo em banco e provê-lo de uma base internacional de operações. Na crise de 2008 a holding do grupo X saiu às compras num momento em que todos estavam de calças curtas, obtendo uma expansão inédita de sua carteira de negócios e posicionando-se como credora da concorrência. Como prêmio, o Sr. X deu-lhe toda a operação financeira off shore para administrar, instalando-a no seu próprio apartamento em Londres.
O magnata tinha essa superstição de enfiar a letra X no nome de todas as suas empresas, o que deu margem a muitos melindres na hora em que Heloísa precisou abrir a agência do X-Bank nas Ilhas de Jersey. São as delicadezas dos paraísos fiscais: ninguém liga para uma conta em nome de Leo Green, Red Ruby, Düsseldorf, Blue Diamond ou Beacon Hill, já um banco chamado X... A semana de Heloísa ficou dividida entre Europa e Brasil; de segunda a sexta, trabalha na City londrina e mora em Kensington num duplex de cobertura com paredes envidraçadas e vista deslumbrante para o Tâmisa e o Hyde Park; nos fins de semana, vai de rio Pinheiros e Parque Burle Marx mesmo.
Não há choro nem ranger de dentes. Heloísa gosta do que faz, da vida que leva e se autojustifica com os mesmos argumentos que um digno pai de família do século passado usaria: não vive na farra, ou seja, a zona é bem organizada; ninguém fica desassistido e, exceção feita a Matheus que gostaria de ter a mãe em casa durante a semana, ninguém chia. As férias são salomonicamente divididas entre as duas, vá lá, famílias e o corolário de tudo vem de uma frase do pai dela: “Quem paga os músicos, escolhe a música”.
E la nave va.
Ou melhor, ia. Já dizia o velho deitado: não há mal que sempre dure, nem bem que nunca se acabe.
Heloísa e Callista acabaram de transar; a saudade era grande depois de um feriado prolongado que a primeira vinha de passar num resort com o filho e o marido na Bahia. A jovem inglesa ignora por completo a parte brasileira da vida dela, as ausências da parceira caem invariavelmente na categoria das exigências do seu mais do que exigente cargo ― até isto a situação tem do enredo clássico: dois dos vértices do triângulo amoroso se ignoram solenemente.
― Lois, bring my book willya? ‘Guess I left it there near the mirror…
Heloísa dirigia-se para o banheiro, voltou o olhar para o pedação de fêmea estirada na cama entre os lençóis acetinados. Não se cansava daquela paisagem de carnes longilíneas e alvas; abriu a porta e logo avistou na penteadeira o livro que ela lhe pedira: Where are you going, where have you been?, de Joyce Carol Oates. Levantou os olhos para espiá-la novamente pelo reflexo do espelho.
― Minha nossa, credo, aiiiii! ― o coração de Heloísa quase que lhe salta pelos gorgomilos: ali no espelho, em vez de Callista, ela via Gimeno, despido na cama atrás dela.
― Honey, what’s up? You’re scaring me!...
Virou-se lentamente na direção do leito, mas ali encontrou apenas a amante com os olhos arregalados e cara de interrogação. Sentou-se na cama e pediu que lhe buscasse uma água na cozinha, disse que não era nada, que melhorava já, apenas estafa de trabalho. Burn out, uma síndrome comum em CFOs.
De volta para São Paulo, andava inquieta. Aconteceria de novo? Por dúvida das vias, cobriu o espelho do quarto com uma toalha quando o marido começou a agarrá-la com segundas intenções; não podia estar menos “ligada” para a sacanagem, mas deixou-se ir ao ver a cômoda devidamente coberta. No meio do bem-bom, o susto: Plunkt-Plakt!
― Ave, Mãe! Não, de novo não... não pode ser!
― Calma amor, é só a porta do armário que abriu. Preciso consertar... ― na folha interna do armário que era espelhada, horror dos horrores, o reflexo de duas mulheres na penumbra do quarto.
Foi consultar uma psicanalista bam-bam-bam da Tavistock Clinic. A decana lhe explicou que provavelmente estava sofrendo de alucinações visuais provenientes do retorno do Complexo de Édipo; resumidamente, ela disse que, muito embora não sentisse culpa conscientemente, a situação se tornara conflitiva porque reencenava a possibilidade nefanda de transar com papai e mamãe alternadamente. Depois dessa, pagou a conta e não voltou mais ao consultório da Dra. McDougall.
Decidiu deixar como estava, até porque, só ela via o que se passava do outro lado do espelho; o que os olhos do marido e da namorada não vissem, o coração não sentiria. Até que...
― Oh no, not this mirror thing again, Heloïsa! Now what?
Pobre Callista!, se pudesse ver pelos olhos da outra, veria duas figuras reproduzidas na superfície da janela do apartamento; porém, ao lado de Heloísa estaria um menino sardento usando aparelho ortodôntico. Devia ter uns oito anos de idade.
Um comentário:
Pô, aí já é show de horror, rsrsrsrs... adorei a série! Bjs!
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