domingo, 29 de julho de 2012

O corno do Bife (parte 1)




            Estão todos na sala, calados e constrangidos, não sabem o que dizer, não olham uns para os outros; claro, os Pais negam, mas os miúdos e a criadita já compreenderam que é a última vez que estarão ali, naquela mesa, naquela casa, naquele país que um dia pensaram que podia ser deles; e quem tinha razão era o catraio mais novo, que andava sempre a dizer que íamos todos para a Catralhamba; a Mãe fez uma aletria desastrada que insiste para que comam antes de ir para o aeroporto, a canela mal espalhada, os cabelos de anjo meio esfiapados demais, o leite talvez estragado demais, é a cacimba a dar cabo de tudo, ou talvez a guerra, que faz tudo sair do costume, que fecha o Park Miramar para o brinquedo e faz o pão chegar atrasado e as más notícias antes; e vai levando os vizinhos, os amigos, os professores, como levou a cabeleireira, o sapateiro e os colegas da escola, e faz aumentar os musseques, e traz a música monótona dos morteiros e dos tiros ao longe; o Menino nunca mais vai voltar a comer, sequer a ver, aletria sem nausear, a muitas tias vai fazer desfeita, em muitas casas fará cerimónia, porque já na massa doce do trigo ficou misturado o gosto azedo e distraído daquilo que não se compreende, apenas se vive.
            ― Olhem que perto do que está por vir, os massacres da UPA em sessenta e um vão parecer uma festa saloia... O Almirante Vermelho, este comuna de merda do Rosa Coutinho, vai levar isto aqui, conosco na boleia, à breca! ― o Doutor Cardoso não cansou de o alertar, mas o Pai tinha a cabeça dura das pacaças; achava-se mais esperto e bonito e abençoado do que os outros e custou a acreditar que o pior também acontece de vez em quando.
            ― As notícias não são boas nem de um lado, nem do outro: lá na metrópole, são maluqueiras atrás das outras desde o Vinte e Cinco de Abril, e cá... candengues ainda, já matam e esfolam, cortam mãos e orelhas à catanada por uma galinha; não digo nada se não voltarem ao canibalismo... ― a Dona Judite, esposa do Dr. Cardoso, tem muita paciência com as esquisitices da Mãe, ela, que ficou tão nervosa depois que o mais novo operou a vista na África do Sul; a Mãe é muito atirada, atravessa as falas dos outros, sai-se com assuntos pouco a propósito nas conversas, vive como se andasse no chão de gelatina da lua, onde os americanos espetaram uma bandeira antes dos russos; gasta a vida em infindáveis reuniões de entusiastas da TupperWare, um mundo de plásticos coloridos e felizes, um mundo de modistas da Prenda que copiavam os modelos das Burdas que havia em todas as casas, em que se ia ver as montras da casa Sarita; um mundo em que as mulheres fumavam e enchiam o cabelo de laca e punham lenço para andar de lambreta e usavam vestidos de estampas psicodélicas: O-bla-di-o-bla-dá...
            O Menino só sossegou depois de ver todos os livros que queria levar dentro da mala: os Tintins, os Astérix, os clássicos da Disney, as aventuras de Blake & Mortimer, a Série dos Cinco, Philemon, o náufrago do T; este era mesmo porreiro, a história de um rapaz que o barco afundava e ele ia parar no T do Oceano Atlântico... tínhamos sido despejados de uma existência pacífica para a condição de náufragos em poucos meses desde a Revolução dos Cravos; as conversas dos adultos, que o Menino escuta do alto da escada pretextando sonambulismo, deixaram de comentar os filmes de cowboiada do Trinitá, ou baixar o tom ao falar das marmeladas que fazia a Emanuelle no avião, ou das alhadas do Cantinflas, e de repente se enchem de palavras e siglas enigmáticas: Junta de Salvação Nacional, MRPP, MPLA, FNLA, UNITA, Jonas Savimbi, General Spínola, Holden Roberto, Agostinho Neto; em algumas das janelas do bairro começam a aparecer as bandeiras do Galo Negro: kwacha UNITA, kwacha Savimbi, talvez os pretos financiados por Pretória não nos deitassem ao mar.
            A rádio agora dava as listas dos desaparecidos antes da Simplesmente Maria, as aulas foram interrompidas após uma rajada de Kalashnikov destelhar a escola, a cabeça de um branco espetada num pau foi encontrada à beira da avenida lá para o lado dos Combatentes; o mundo voltava a ser em preto e branco depois de já ter sido a cores no cinema e nas fotografias, que televisão não tínhamos; o que havia era o Miramar, cinema ao ar livre com vista para o mar (já diz o nome), logo ao fim da nossa rua, a Alameda do Príncipe Real, número 14; da varanda da casa, a Criada ensinava ao Menino as cores das pessoas: aquela acolá é uma senhora (podia ser preta ou branca), lá vem um senhor (é branco), aquele lá, a descer do machimbombo, é um preto da tugi; e não se lhe metia na chipala que também ela podia ser uma pretinha do Quitexe, que nunca teve pai conhecido e que a mãe entregou para que pudesse ter comida e educação com os brancos da capital; mas agora, com a famelga massacrada pelos terroristas, também ela teria de fugir para o mundo, náufraga como nós; tínhamos ido todos para a Catralhamba, o puto estava certo.

Um comentário:

Dalva M. Ferreira disse...

Falou grego. Mas com propriedade. É sempre fantástico ver o lado dos outros, pois nós nem sonhamos o que essa gente toda vivenciou.