domingo, 10 de fevereiro de 2013

A profundidade começa na superfície (I)




Dramatis personae

            Dara
            Camila
            Moradora 1 (idosa)
            Morador 2 (menino)
            Amigo de Camila
            Amiga de Camila


Cena 1

(Noite. Dara e Camila chegam de viagem carregadas de malas, sacolas e valises. Hall de entrada de um prédio antigo de classe média cuja decoração inclui: duas savonarolas de jacarandá com encosto de couro, uma mesa baixa de laca escura sobre a qual se encontra uma jarra cilíndrica de vidro preenchida por três copos-de-leite e, na parede, uma pintura a óleo com moldura dourada representando uma cena de caça. Ao lado dos móveis, duas portas de elevador com postigos de latão, abaixo destes, placas que indicam “Social” e “Serviço”. Uma senhora de idade aguarda na frente do elevador social.)

Moradora 1 ― Boa noite.

Camila ― Boa noite.

Moradora 1 ― Você não é a neta do ‘seu’ Martos?

Camila ― Eu mesma. Puxa, que boa memória a senhora tem, estive fora muito tempo... nem achei que alguém aqui me reconheceria.

Moradora 1 ― Vai morar no apartamento dele? Depois que ele faleceu ficou vazio tantos anos que até achei que a família tinha esquecido.

Camila ― Bem, na verdade houve problemas no... no inventário do meu avô, mas agora tá tudo certo. Vamos ser vizinhas, ao que parece.

Moradora 1 ― A sua... amiga, também? Vão morar juntas, né?, veja: não é da minha conta, só pergunto porque você não deve estar precisando dividir as despesas, afinal, a menina é de uma família tão boa...

Camila ― É, não, pra ser mais exata, nós estamos juntas há bem um tempo, se a senhora me entende... Ah, desculpe, esqueci de apresentá-las... esta é a Dara.

Moradora 1 ― Muito prazer.

Dara ― Prazer.

(Não se cumprimentam. Apenas trocam ligeiros acenos de cabeça.)

Camila ― Tá demorando esse elevador, não? Acho que vamos pelo de serviço.

Moradora 1 ― Ih, esse é o pior: estamos no horário de saída das empregadas, aí, já viu, elas param no andar umas das outras de conversa, saem juntas pra pegar a condução... No social, são as crianças subindo e descendo, um horror!

Camila ― Bom, chegou o de serviço. A senhora vem conosco?

(Dara empurra as bagagens para o elevador e entra.)

Moradora 1 ― Obrigada. Vou aguardar o outro. Espere um pouco, a sua amiga... bem diferente ela, fala com sotaque, é estrangeira?

Camila ― Sim... de certo modo, claro, ela veio de fora...

Moradora 1 ― Não leve a mal que eu diga, mas... é melhor levá-la num bom médico, a cor dela tá meio esquisita, sabe?


Cena 2

(Interior de apartamento, há uma mesa de jantar com algumas cadeiras e um sofá; o restante dos móveis está coberto por lençóis brancos. Vêem-se duas portas, uma dá acesso ao quarto, a outra, a uma cozinha americana. As bagagens estão acumuladas num canto, Camila está sentada no sofá e Dara sentada à mesa. Camila procura algo numa nécessaire.)

Dara ― Que coisa!

Camila ― Que coisa, o quê?

Dara ― Essa intromissão na vida dos outros, ou vai dizer que não reparou?

Camila ― É melhor você ir se acostumando, esse é o jeito das pessoas por aqui. Ela não fez por mal, tenho a certeza.

Dara ― Pode até ser. Mas não há como negar que aquela senhora conseguiu em poucos minutos informações completas sobre nós. Seus conterrâneos me parecem ser bem do bisbilhoteiros.

Camila ― Por outro lado, eles costumam ser muito solidários e afetuosos. Mas isso não tem importância, o importante é que chegamos e este agora vai ser o nosso cantinho. Acho que vamos ser tão felizes aqui...

Dara ― Que é que você tá procurando, Mila?

Camila ― Meu sonífero. Devia estar neste estojo...

Dara ― Se vamos mesmo ser felizes, talvez você consiga viver sem os seus remédios. Agora sou eu que estou dando uma de entrona, mas é que... alimentei essa ilusão por um tempo: achei que a minha chegada na sua vida poderia fazer você largar as pílulas mágicas...

Camila ― Mas eu sou tão feliz com você! Você nem pode imaginar o que era a minha solidão, a angústia, o desespero dos dias e noites em que só pensava em como seria bom simplesmente deixar de existir.

Dara ― Ok, não deixa de ser uma declaração de amor. Embora pela via negativa, pelo contraste: o que você está dizendo, no fundo, é que sem mim poderia ser pior...

Camila ― Vamo parar? Dá, tou super cansada, e quando entro nessa pilha, meu sono fica ainda mais difícil... Não podemos deixar esse assunto pra depois, não? Por que você tem sempre de ir tão a fundo em tudo?

Dara ― Tem razão. Às vezes pego pesado demais... mas é que me faz uma impressão danada te ver tomando um coquetel pra ligar de manhã, e outras bombas pra desligar à noite.

Camila ― E o que você faz quando o sono não vem de jeito nenhum?

Dara ― Meditação.Você ouviu o barulho?

Camila ― Sim, veio da cozinha.


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