Cena 4
(Dia, apartamento do casal.
Camila chega da rua carregando uma sacola de feira trazendo frutas e verduras.
Dara está no sofá rodeada de livros, segura uma prancheta de desenho e um
pincel grande, abastecido pela tinta preta de um frasco sobre a mesa de centro.)
Dara ― Deixa eu te ajudar...
Camila ― Obrigada, vamos pôr na
parte de baixo da geladeira. Abre a gaveta pra mim? Isso, pega as uvas; essas a
gente lava depois, vou por o agrião na água primeiro... Tava desenhando, é?
Dara ― Escrevendo, pensando... ah,
e ouvindo também: os barulhos da cozinha continuam a toda; umas duas vezes me
levantei pra ver o que era. A novidade é que agora não vem só na cozinha,
quartos e banheiro também recebem visitas do além.
(Saem da cozinha na direção da
sala, Camila senta-se no sofá onde antes estava Dara.)
Camila ― Vocês... quero dizer,
você também acredita nessas coisas?... Hãm, fantasmas, aparições, tipo,
fenômenos sobrenaturais...
Dara ― Você está querendo dizer
fenômenos de causas desconhecidas, certo? Bem, no desconhecido eu acredito
sempre, nunca duvido da minha capacidade para a ignorância.
Camila ― "Amo em ti o que
mais ignoro, e por isto mesmo, a única coisa que não posso esquecer". Não
me lembro quem foi que disse isso, mas talvez seja justamente a força do
equívoco, o desconhecimento de que você estava falando, que escreva o
arquitexto do amor: um traço, uma marca de passagem; já que só se conserva o
que um dia foi ausência. Tenho pensado cada vez mais na possibilidade da
memória da água, o sonho metafísico da homeopatia: podem as substâncias deixar
um 'rasto' no solvente que as diluiu até desaparecerem? Pode a matéria
subsistir numa forma, como dizer, menos densa, real, existente?...
Dara ― Se doeu, se houve amor,
haverá uma trilha, pegadas. Pensa na pessoa que você é, que você se tornou:
cada amor que você teve, cada um... cada uma que você amou, sutilmente se perpetuam
em quem você é hoje... claro que não em um sentido 'material', porém, ainda
assim, efetivo.
Camila ― Então a antropofagia é
um subespécie do amor, ou será exatamente o contrário?
Dara ― Acho que o amor é o
gênero, e a antropofagia, a espécie. De qualquer modo, não há amor sem
incorporação...
(Beijam-se demoradamente.)
Camila ― Hmm, não sei se você
sabe, mas a antropofagia é uma espécie de elemento definidor do caráter
nacional. É extremamente contraditório: este é um país conservador e, ao mesmo
tempo, muito predisposto à incorporação de tudo que lhe vem de fora. Um
verdadeiro saco de gatos, um solário onde todos os gatos são pardos.
Dara ― Curioso mesmo, andando
pelas ruas tive uma sensação agradável e multicolorida. As pessoas daqui exibem
todas as combinações de cor de pele possíveis, a tal ponto, que passei quase
despercebida caminhando no meio da multidão.
Camila ― Que bom, fico feliz de
saber que você tem saído de casa, passeado sozinha. Só tome cuidado, esta não é
uma cidade civilizada por inteiro...
Dara ― Sim, verdade, esta
metrópole é um labirinto de possibilidades e perigos; um caos em que todos
ainda estão descobrindo formas de sobreviver, na qual as estratégias de
convivência permanecem em aberto. Tudo por aqui ainda se encontra em estado de
fluxo; e eu saio à rua como se fugisse de você, deste apartamento, como se
estivessem abertos todos os caminhos do mundo.
Camila ― Dara, meu bem, não se
esqueça: você chegou agora, veio de muito longe, com o coração aberto e a alma
cantando.
Dara ― As grandes cidades não se
mostram de uma vez, e nunca por inteiro, via de regra, se fecham obstinadamente
para o turista ocasional. Estou convencida de que elas são como as orquídeas, é
preciso tempo, cuidado e paciência para conhecê-las; assim como os recantos da
urbe, as flores de orquídea se recolhem em longas latências de espera e
segredo. Geralmente, são flores de perfume diáfano, pouco evidente, mas quando
eclodem, inauguram plenitudes, transformam o passo e as distâncias, desdobrando
o espaço à sua volta. As cidades precisam ser flanadas, percorridas pelo lado insólito:
uma fábrica abandonada, a beira suja de um rio sujo, um hospital em ruínas, os
subterrâneos, os presídios, os edifícios condenados, o muro alto que margeia a
linha do trem... Duas balconistas de uma loja brigam no meio da rua,
desentendem-se, xingam-se a altos brados; os passantes se assustam, saem de
lado; as duas passam dos palavrões aos safanões, em breve, rolam pelo chão e se
arrancam mutuamente as roupas sem que ninguém faça nada. Alguns gritos e
incentivos da platéia, assobios, não entendo o que elas tinham a dizer uma à
outra; a pequena multidão se dispersa, todos seguem seu caminho. Tudo tão
misterioso, e belo, e violento; tão sem explicação!
Camila ― Você tem medo que a
gente brigue?
Dara ― Claro. O amor e a guerra
são artes da perda...
(Ouvem-se batidas na porta. Dara
vai abrir, na soleira aparece um menino de aproximadamente cinco anos
carregando um boneco na mão. Camila reconhece o filho dos vizinhos de andar.)
Camila ― Olá mocinho, errou de
porta?
(O menino vira-se na direção de
Dara erguendo o boneco da direção dela.)
Morador 2 ― Bang, bang, pow, pow, pow!
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