Cena 5
(Noite. Apartamento do casal,
Camila e Dara estão sentadas no sofá, Dara mostra seus desenhos caligráficos
para a companheira.)
Camila ― Você está chorando!
Dara ― Estou. Aquilo de ontem me
perturbou, é cruel demais, até uma criança tem medo, ou raiva, ou sei lá que
mais... é muito pra mim, e é muito pra você também, não negue.
Camila ― Não fica assim, vai
passar, tudo passa... É isso que mesmo que você disse: é só uma criança,
sabe-se lá o que puseram na cabeça do coitadinho. Vai, mostra pra mim o que
você andou fazendo, sabe, é incrível como você aprende rápido: dominou a minha
língua melhor que eu, e agora, tá aprendendo sozinha o chinês!
Dara ― Os voluzianos amam se
comunicar, conversar é uma forma de amor. Veja, é o que eu estou sentindo
agora: bei ai, tristeza (悲) e aflição (哀)... Os ideogramas são conceitos
amplos, eles contam uma história por meio de imagens que se combinam e
superpõem, criando novas histórias, liberando sentidos inéditos; por exemplo, bei, a tristeza (悲), é um coração (心) que se recusa (排), olha, não te parece uma pessoa
dando as costas a si mesma dentro do seu coração? Já a aflição (哀), ai, são os gritos e gemidos que saem da boca (口) daquele que trajou as vestes
próprias do luto (衣);
a aflição exprime um luto, a dor de uma perda publicamente manifestada.
Camila ― Puxa, com uma explicação
dessas até parece fácil... Às vezes me passa essa piração pela cabeça: e se a
gente brigar, e se o nosso amor acabar? Não posso simplesmente te deixar
sozinha neste mundo que não é o seu, que não te acolhe direito, sei lá, me
sinto um pouco responsável por você aqui...
Dara ― Estou tão sozinha como
você na vida, quero dizer que estar viva é um exílio tão louco, solitário e sem
sentido pra mim como pra você. Ninguém está a salvo, não enquanto está vivo.
Você é mais aceita do que eu? Este mundo é mais sua casa do que minha? Camila,
você é uma mulher humana, e eu, uma fêmea voluziana, certo, a minha diferença
também se vê na pele; mas, no fundo, valemos tanto ou tão pouco uma como a
outra. A cidade, esta cidade, qualquer cidade, é a mesma pra todos? Você pode
andar sozinha pelas ruas nos mesmos lugares e nas mesmas horas que os seus
amigos homens? Não pode, talvez nunca possa. As mulheres são uma espécie de
cidadãs de segunda classe, o eterno segundo sexo; somos menos empoderadas
física, social e politicamente. Bom, isso mudou muito nos últimos anos, é o
mantra que todos repetem, mas... você, ainda acredita realmente que as pessoas
querem viver sem a desigualdade?
Camila ― Vou abrir um vinho pra
nós. No que me diz respeito, te digo que é preciso desejar e lutar pelo novo; quero
estar à altura do meu desejo, e não ser do tamanho limitado da minha
estatura...
(As luzes se apagam de repente,
as duas acendem velas em vários pontos da sala. O telefone toca.)
Camila ― Alô, oi, sim, sou eu...
ah, meu querido, quanto tempo, mas não, de maneira nenhuma, claro, venha, será
o maior prazer... acabamos de abrir um vinho, claro, você sabe o andar, né? Tá
bom, vou avisar na portaria...
Dara ― Quem era?...
Camila ― Um amigo meu, ele tá
vindo pra cá... ficou preso na chuva e, agora, com o apagão, ligou pra saber se
podia esperar o engarrafamento passar aqui com a gente. Você vai se divertir
com ele, é meio fora da casinha, mas muito do gente boa.
(A campainha toca, Camila se
levanta para abrir a porta.)
Amigo ― Puf, dureza subir essas
escadas a pé... Boas! Gentem, vocês estão perdendo o espetáculo: as luzes dos
carros viraram a única iluminação pública da cidade, que afunda nas trevas, no
dilúvio e no caos; um belíssimo trombo de veículos paralisa a metrópole que não
pode parar, das janelas dos prédios às escuras, lanternas e lasers apontam seus
fachos inúteis para todos os lados; e, diante do descalabro armado, diante do
desenfreado galope dos Cavaleiros do Apocalipse, eu lhes pergunto: onde estão
os poderes constituídos?, o que andarão fazendo as autoridades? Ah, que
distração, não é possível saber; se não está passando na televisão, não há como
saber o que se passa. Ainda bem que me restou o celular para ligar pra vocês e
pedir penico...
Camila ― (Aproximando-se da
janela) É verdade, olha, um monte de gente nas janelas com essas luzes que você
tá falando... isso adianta?
Amigo ― Claro que não, mas as
pessoas querem ter a sensação de que estão fazendo alguma coisa. Já nos
acostumamos: a sobrevivência urbana é um estado de alerta permanente, melhor
dizendo, de desvio; estamos constantemente nos desviando dos defeitos da
cidade. Esta é a nossa relação fundamental com o formigueiro humano: desviar, achar
rotas de fuga, driblar obstáculos; desviamos o tempo todo de alguma dificuldade
que a vida na colméia nos impõe.
Dara ― Mas senta, relaxa um
pouco, toma um vinho pra acalmar, afinal, agora você chegou no santuário.
Amiga ― Obrigado. De fato, com
todas essas velas acesas, aqui tá parecendo mesmo uma coisa do tipo santuário...
Camila ― Hahaha, você não fala a
sério nunca? Ainda bem que estamos em casa, ficaria assustada de enfrentar esse
apagão se estivesse longe.
Amigo ― Com medo estaria eu, se
tivesse que morar aqui no apartamento do seu vô Martos, Camila!
Camila e Dara ― Como assim?!
Amigo ― Caramba, não sei se é a
melhor hora pra falar disso, assim, neste breu danado... Vocês só precisam ir
numa reunião de condomínio, que o povo conta tudo... Putz, não me olhem com
essa cara, quer dizer que nunca ouviram falar da história dos gatos?
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