domingo, 31 de março de 2013

O último fim de mundo do milênio (V)



ZABA 19:18

            Ela olhava distraidamente pela janela do carro, quando a solução lhe apareceu bem na frente do nariz.
E que aparição: a traveca japonegra loira, gigantesca e desvairada, montada em botas vermelhas de salto vertiginoso, corpete, lingerie e meias arrastão ornando em carmesim berrante, desfilava pela avenida do Jóquei como se estivesse na Sapucaí.
É isso, entendi, simples assim: mudar o foco, apresentar o contraplano; boa Zaba, sua massa cinzenta não fritou! Vou mudar radicalmente a lista de convidados da festa lá em casa... hmm, meus amigos vão entender, avisando agora... são sete e dezoito, ah, todo mundo se arranja algum chill out... ainda dá, e depois, os meus amigos estão em todas as listas VIP desta cidade. Já o pulha do Nino e a biscateira da personal-amante, vão ter A balada pra lembrar pro resto do milênio, garanto que vão!
“A prefeita eleita, Marta Suplicy do PT, toma posse amanhã, e será a segunda mulher a governar a maior cidade da América do Sul... Previsão do tempo para amanhã, dia primeiro de janeiro: mínima de vinte e um, e máxima de vinte e cinco graus na região metropolitana, tempo nublado com chuvas ocasionais...”
Desligou o rádio.
Concentrou-se em um ponto indefinido do universo. Pronto. Aconteceu mais uma vez: Zaba era de novo a empresária top que a afasia transitória varrera da sala de comando da sua vida; o cérebro arguto e pragmático já tinha montado um plano de ação. Etapa por etapa.
Com dois telefonemas, estava falando com a pessoa certa ainda no carro.
“Bom, veja, eu sei que estamos em cima da hora demais, mas olha: quem me passou teu número, garantiu que você é o cara... tá, sei, mais caro... não, claro, o importante é que sejam divertidos e, ah, faço questão das fantasias, o tema é um baile de máscaras. Você vai ter que me retornar pra avisar, isso, a placa da van... se eu não deixar na portaria do meu condomínio, não entra... É, isso, Sunrise Village, você anota o endereço?...”
Chegou a casa, Nino ainda não tinha voltado. Dispensou todas as empregadas, a festa ia ser open bar e self service; não estava com saco de alimentar marmanjo, só na mamadeira: cerveja, Chivas e Taittinger.
Ligou pro traste enquanto ia deixando as roupas pelo chão a caminho da cozinha. Andava inteiramente nua pela casa, uma Iracema com lábios de fel, formas generosas e carnação rija; aos trinta e nove, Zaba era de tirar o fôlego de triatleta: linda, rica, inteligente, despachada... fora o corpão de viola-da-gamba. O Nino devia ter batido a cabeça em alguma quina.
“Alô, alô... oi amor, sou eu, você ainda tava malhando? Claro, posso imaginar... hã?, nada, nada, só tô imaginando você ficando todo saradinho, só pra mim... certo, te espero. Ah, avisa pra nossa personal que a festa mudou... é, uma surpresa que resolvi fazer, uma coisa, assim, mais agitada... mudou só um pouco, vai ser festa à fantasia... a gente merece, amor, é a última do século vinte!”
Esqueceu o que tinha ido buscar na cozinha.
Abriu a geladeira, serviu-se de um prosecco. Foi até o gaveteiro, retirou do estojo uma faca de cerâmica. Atravessou a sala com a enorme adaga negra numa mão e a taça na outra. Sua atenção se virou de relance para uma foto sobre o console da lareira; arrancou-a da moldura, largando a bebida ao lado do passepartout vazio.
A fotografia mostrava três pessoas sorrindo em trajes de academia.
Uma corna e dois traíras.
Zaba se viu repentinamente coberta por um manto gosmento de larvas sanguessugas: a alucinação transitória trouxe-lhe de chofre a imagem mais nítida da legião de encostados que sustentava. Só tinha descoberto mais dois. Picou a foto em tiras finas com a lâmina ultra afiada formando um montinho no chão.
Abriu as pernas colocando-se sobre o carpaccio de aparas e sonhos desfeitos, e urinou em cima.


MATHEUS BUCALEM 19:28

            “Matheus... Matheus... Matheus!! Você quer fazer o favor de sair desse quarto?! Desliga o computador e vem pra baixo, seus avós chegaram”, dona Nadira se preocupava com o tanto de horas que o menino passava no videogame, mas o marido não autorizava o confisco. Tudo deixava ao caçula, o filho homem.
            “Já vou, mãe, só mais um pouquinho...”, não podia acreditar que a mãe ia arruinar tudo, Matheus estava no meio da missão. Não podia sair agora, desfalcar a equipe na hora do mano a mano.
As mães não conseguem entender o significado de on line? Não é um jogo de liga e desliga, pô!
Com efeito, era realmente distante a galáxia de preocupações onde se consumia a mãe de Matheus para entender o universo implacável de Counter-Strike. O game de combate do momento. Sair agora certamente lhe custará uma punição em futuros torneios de equipes.
“Filho, desce agora”, a intervenção do pai selou seu destino. Game over.
Que chateação foram inventar, jantar de Réveillon! Nem presente ganha, só pentelhação e frutas secas, que saco!
A sala estava uma confa federal, os avós tinham sido agredidos no semáforo antes de chegar ao condomínio. O pai falava ao interfone com a segurança; a mãe, as irmãs e as empregadas se desdobravam entre a avó, muito nervosa, e o avô, nervoso e com um galo na testa. Dois bandidos tentaram roubá-los, mas se atrapalharam com a lentidão deles para entregar os pertences; Fugiram sem levar nada. Sobrara uma pancada no coco do Vô, mas ele não parecia muito mal ― quem estava fora da casinha era o pai.
“Você tem mesmo que sair?” a mãe sabe dos perigos destas ‘saidinhas’ do marido, mas não pode confrontá-lo em público. Intimamente, teme o traço hereditário que vê despontar no filho: ambos não aceitam que, uma hora, o recreio acaba.
“Que é que você acha?. É preciso registrar o B.O., afinal, agrediram os meus pais!”, Walid Bucalem, na verdade, prepara-se para matar dois coelhos com uma caixa d’água só. Vai prestar queixa na delegacia mais eficaz do bairro: basta dar a fita pro Chantecler, o trafica da favela ao lado do Sunrise, e esses nóias rodam bonitinho. Daí, é aquela história do Jaques: já que está por ali, traz munição pra dar uns tirinhos antes da virada de ano. Só uns tecos pra comemorar.
“Matheus, vamos pro seu quarto? A gente relaxa um pouco lá até sair a janta”, tal como o pai, o avô também tem loucura pelo menino.
“Isso, vamos Vô, aqui tá muito chororô”, o quarto de Matheus fica no terceiro andar; a subida é um sofrimento para as juntas do avô, mas a recompensa é certa.
“Como tem andado a... astronomia?”, o avô desfruta intensamente da luneta que o neto instalou na janela do seu quarto no sótão.
“Hmm, médio, muita gente viajou, as vizinhas tão muito quietas”, apontou as lentes para uma construção modernosa no fim da rua. Arquitetura bem style: cimento armado, paredes de vidro, baixa; do seu posto secreto de observação, Matheus pegava ângulos bons de uma sala, dos corredores e da piscina; a dona da casa tinha uma abundância e uma peitância que lhe proporcionavam bronhas inesquecíveis.
            Mas nunca tinha dado sorte como daquela vez. Correu a pegar os binóculos no armário, apagou as luzes do quarto e voltou como um raio pra janela.
            “Mas o que é que você está tão...?”, ainda arfando da subida, o avô sentou-se e ajustou o focou do telescópio amador.
            Boquiabertos, avô e neto respiravam em longas inspirações como se pudessem absorver a cena pelo ar. Ofegaram em silêncio por longos minutos.
            “Vô, aquilo na mão dela... é-é uma faca...”
            “... e nuinha como veio ao mundo, meu Deus, que pedaço de mau caminho!”
            (...)
    “Vô, ela tá...”
            “... mijando, ela tá mijando!”

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