(...)
Amigo ― Hã-ham, parece que é
sempre assim, tem dessas histórias que só alguém de fora da família pode
contar, embora eu seja um amigo praticamente da casa... Ninguém te explicou
direito como foi a morte do teu vô, né não Camila?
Camila ― Bem, até onde sei, ele
se enganou com a dose dos remédios que tomava diariamente... vô Martos nunca
aceitou que os meus tios pusessem um cuidador pra ajudá-lo...
Amigo ― O certo é que ele fez um
mingau com todos os comprimidos, cápsulas e pozinhos que encontrou nos
armários, pôs numa tigela, marinou tudo com campari, e mandou pra dentro. Tomou
de colherada. ‘Seu’ Martos era orgulhoso demais, sabem?, acho que ele se viu
muito perrengado, frágil; também tem o fato de que ele não processou bem a
morte da sua vó... Não quis continuar, simplesmente cansou de lutar com a falta
de sentido da vida, da solidão, e ainda havia a gataiada da vó Dita... pra
encurtar, ele tomou o mingau do grande sono junto com os bichanos, todos os
cinco.
Dara ― Quer dizer então que os
barulhos da casa são... gatos?! Ou o fantasmas dele, ou deles?...
Amigo ― Aí é que as coisas se
complicam: tudo indica que a bagunça que vocês e o resto dos vizinhos ouvem
neste apartamento seja um dos
gatos...
Camila ― Não estou entendendo
nada. Você não disse que o meu avô e os gatos morreram juntos?
Amigo ― Pois é, mas aí vem a
dona aritmética e as contas não fecham: aqui viviam o seu avô e mais cinco gatos, mas só foram encontrados
quatro! A Lucinda, como se chamava a gata desaparecida, nunca mais foi vista...
só ouvida. Os moradores deste prédio juram que perdida ela não está.
Camila ― Que história pra se
contar no escuro, na boa querido, você tem o timing do terror gótico! De todo
modo, sinto-me um pouco feliz por não ser a alma do meu avô que anda por aí;
acho que ele não ia aprovar que a neta viesse morar com a namorida no
apartamento dele...
Dara ― Ah, mas não deixa de ser
triste, a pobre criatura não encontra repouso. É como se a Lucinda não
estivesse viva nem morta, mas num estado intermediário, um limbo de nostalgia e
busca desesperançada...
Amigo ― Oquei, embora seja assim
mesmo que a maioria das pessoas passa seus dias: entre a saudade nebulosa e o
frenesi angustiado. Todos acordam de manhã, poucos são os que despertam.
Dara ― Ouviram isso?
(Os três se entreolham em silêncio. Neste
momento, voltam as luzes.)
Amigo ― Bom, acho que já dei com
a língua nos dentes o bastante por hoje... Mila, desculpa ter entrado na sua
crônica familiar tão bruscamente, não queria...
Camila ― Relaxa, é bom saber,
afinal, moramos neste lugar. Até prefiro, detesto casas novas, sem enredos, sem
cadáveres no armário, nem maldições... Te acompanho até à porta.
(Despedem-se com beijos e
promessas de se reverem brevemente. As duas apagam as velas e as luzes
elétricas, viram o sofá para a janela pra contemplar a noite de lua cheia.)
Camila ― E esta agora? Temos um
fantasma entre nós, mas também, quem não os tem? Nunca te perguntei do teu
mundo, não quis fazer da nossa uma relação de conhecimento científico... só
que, agora que você conhece os meus, queria saber dos teus miasmas...
Dara ― Não seria a mesma coisa. É
como a história que o teu amigo relatou: você precisaria viver lá pra se
inteirar, há conhecimentos que só se adquirem in loco. Mas uma coisa me deixou feliz: sinto que esta é uma
presença suportável pra você. É só um gato, mas não é um gato qualquer.
Camila ― Dizem que os gatos
enxergam além das aparências, que eles comunicam com os outros mundos que a
realidade dos cinco sentidos não atinge; às vezes, os felinos param a olhar
certos cantos onde não há nada, como se pudessem sentir, ou pressentir, a
presença daquilo que nós mal adivinhamos. Você tem razão. Acho que posso
agüentar, os seres humanos agüentam tudo.
Dara ― Não é verdade, são poucas
as coisas que se pode suportar. Suportar mesmo, quero dizer. Poetas, em
compensação, podem suportar tudo; mas isso inevitavelmente conduz às portas da
ruína, da loucura e da morte.
Camila — Tô com vontade de passar
a noite aqui, ao seu lado, olhando a lua, sonhando com a estrela distante de
onde você veio. Quando acabar o império de terrores da noite, o sol e a estrela
da manhã trarão o conforto da hora primeira, nos encontrando naquele ponto onde
tudo começa a nascer do perdido, lentamente.
Dara — E então poderemos inspirar
profundamente, sorver o ar seco do dia e ouvir o grito ritmado do coração:
sim-não, sim-não, sim, não... Eu me sinto perdida e feliz no desfiladeiro do
dia; um dia nunca repete o anterior, são sempre metamorfoses extraordinárias:
metade serpente, metade escada.
Camila — A melhor parte da noite
é o silêncio. O silêncio respira, não digo que possa haver um silêncio capaz de
abolir o ruído branco da cidade — este nunca desaparece, apenas abaixa seu
volume nas horas nuas da madrugada —, mas o silêncio do silêncio, aquele que só
eu conheço: o meu próprio silêncio. Nunca fui tão feliz como sou agora, vivendo
a seu lado, você tem uma presença felina que me encanta: indomada, macia,
silenciosamente intensa.
Dara — Então é isso? Sentir
correndo em atropelo nos vasos do corpo uma enxurrada com todas as sensações
possíveis: perfumes, cores, cavernas, árvores, pessoas, música? É isto a
felicidade?, esse mal-amanhado de equívocos, esses vórtices infinitos, esses
becos sem saída, essas miríades de milhões de sombras? Porque há felicidades
evidentes como a sombra de uma montanha, e há também aquelas que são como as
sombras contidas dentro de uma gaveta: sabemos que estão lá, apesar de não as
ver. O amor, a única força que nos move, permanece música invisível; não é
patético?, a mais bela das coisas do mundo, sombra de sombras...
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