domingo, 23 de junho de 2013

O Monstro (parte final)



Cheguei moída a casa, um trapo de gente. Precisei alimentar os cachorros, esquecidos durante a roda-viva daquele dia ensandecido. Liguei o alarme, tranquei as portas e me recolhi ao quarto, sentindo a falta do homem que acusavam de assassinatos frios e sem motivo. Enquanto escovava os dentes lembrei que não me alimentava há quase doze horas, ainda assim, mandei dois tarjas-preta pra baixo. Mergulhei obtusa num sono agitado.
Acordei com os meus berros, suada e com o coração aos pulos, segundos sem conta se passaram até perceber que o sol raiava através da janela dissipando os últimos restos do pesadelo. A cena das outras noites: Beni saía do banheiro da suíte inteiramente nu, sem falar comigo, sem uma única palavra, acercou-se da cama e me esbofeteou. Antes que conseguisse reagir, ele saiu do script costumeiro: me virou de bruços com violência e me sodomizou.
Ainda ouvindo os grunhidos da besta sub-humana que me atacara em sonho, desci pra cozinha. Preparei um café forte. Continuava incapaz de me alimentar com o que quer que fosse de sólido. O estômago tinha um nó como as bexigas de festa. Enquanto queimava distraída a língua saburrenta e amarga no café fumegante da caneca, uma idéia cruzou o emaranhado de fios soltos dos meus pensamentos matinais. Fui até o depósito de ferramentas e trecos nos fundos da casa.
Aquele galpão, lacrado pela polícia no dia anterior, tinha um mezanino que se acessava por uma estreita escada caracol externa à construção rústica. Era o escritório particular do Beni. Um lugar que ele não deixava ninguém entrar, e só eu sabia onde se escondia a chave. Algo me sussurrava que as respostas estariam lá, organizadas em pastas e gavetas tão ao gosto do meu namorado sistemático. Meia hora de buscas decepcionantes, e nada de nada, exceto folhetos, desenhos, plantas, textos e um PC antigo que não revelou nenhum arquivo digno de nota.
Louca, desorientada, saí derrubando os livros das prateleiras, esvaziando pastas etiquetadas, rasgando folders, derrubando resmas de papéis meticulosamente organizados. Parei, envergonhada da infantilidade daquele acesso de fúria. Por estranho que pareça, lembrei das arengas do professor Asdrúbal:
― Escrever é a forma mais extrema de exposição, é afrontar o maior dos perigos: se expor diante de si mesmo, sozinho, no centro da arena das ilusões perigosas. Não esqueçam o conselho de Michel Leiris: introduzir pelo menos a sombra do chifre de um touro numa obra literária.
Comecei a recolher a bagunça espalhada no chão, não queria macular aquele santuário. Apesar do sonho horrível que me assombrara durante a noite, continuava convencida da inocência do Beni. Um envelope amarelo chamou a minha atenção, tinha o meu nome sobrescritado. Esvaziei o conteúdo na mesa do computador: anotações rasgadas, algumas, desamassadas e provavelmente resgatadas da lixeira, outras, reconstituídas com durex. Reconheci a minha letra nelas, eram rascunhos manuscritos, praticamente rabiscos em sua maioria, material que por algum motivo não quis passar pro notebook.
Sentei pra ler. Nessa hora, meu celular tocou. O doutor Taborda.
― Excelentes notícias: o Beni vai ser liberado hoje, ele tem álibis confirmados para cada dia e hora em que ocorreram as mortes. A polícia tá ouvindo agora as testemunhas.
― Ai, doutor Taborda, que coisa maravilhosa o senhor tá me dizendo. Eu sempre acreditei nele, não podia ser verdade...
― Claro, claro. Vai pra lá por volta do meio dia buscá-lo, tá?
― Ok, muito obrigada por tudo, doutor.
Desliguei. Respirei fundo, a minha vida parecia enfim voltar ao normal. Sentia um alívio imenso, mas aqueles papéis ainda me inquietavam. Na certa, o Beni os guardara achando que eu ia acabar precisando deles. Ajeitei os óculos de leitura.
“Considero que escrever é um insulto, uma forma de desacato aos poderes constituídos, à moral, e aos malditos dos bons costumes, mas é a minha condição para continuar. Eu me alimento disso. De arte, de palavras. De vida. Amo estar viva, sentir-me viva enquanto os outros morrem. Tanta gente morre todos os dias à minha volta!”
Uma lista de nomes:
“Andressa Filgueiras. Sidinéa Guerra Santos. Maria Aparecida Donizetti. Eduarda Flores Alves. Regina Sílvia de Arimatéa Gonçalo. Maria Gladys de Oliveira. Dorotéia Maria Fernandes. Jucilene dos Santos Silva. Sara Francine Mota Palha. Fabiana Pereira. Eliane Célia Bergamim. Valdenízia Borges.”
“O que não me contam, eu escuto atrás das portas. O que não existe, faço acontecer. O que não sei, adivinho e, com sorte, você adivinha sempre o que, cedo ou tarde, acaba acontecendo.”
Quando é que eu tinha escrito aquilo? E por quê?
“Tende piedade de mim, Senhor, são tantas as vagabundas, e eu tão sozinha.”
“Sigo-as pela rua, sigo velhinhas, senhoras respeitáveis, virgens e prostitutas, agoniada e indecisa entre aquela que retoca o gloss molhando os lábios com a ponta da língua, e a viúva toda de preto, as pernas exibindo a pelugem carente de depilação, sigo a dona de casa que vai às compras, as casadinhas assanhadas e as estudantes de cursos noturnos.”
Uma comporta se rompeu, um tropel de imagens, vívidas como se estivessem diante dos meus olhos, passeavam na minha cabeça, ouvia gritos agudos, pedidos de socorro, estertores demorados. Toda uma parte represada da minha vida voltava com a força de uma multidão.
Fui fazer uma malinha com as coisas de que ia necessitar. Acho que agora estava pronta pra pegar o tal touro à unha.


não são só 20 centavos




não sou antipartidário
sou partidário
do anti


marchei até Brás
Ilha


saqueei a Esplanada
sacudi o Itamaraty


protestei contra tudo
e contra tempos


atirei a primeira pedra
de crack


nós somos aqueles
por quem
estávamos esperando


quarta-feira, 19 de junho de 2013

O Monstro (parte 3)



No meio da crucial decisão entre gastar mais na qualidade do aceto blsâmico ou do vinagre, minha mãe me ligou no supermercado. No meio do dia, assim, do nada?, vem bucha na certa... Me afastei dos meus pais já faz um bom tempinho, sem palavras nem esperneio de parte a parte, fixamos cinco datas anuais de visitas protocolares: aniversários respectivos, dia dos pais e das mães (por insistência do Bernardo) e Natal. Telefonemas, só quando o rei faz anos.
― Onde você está?
― No super. Aconteceu alguma coisa?
― Nada sério... é que, era melhor você vir pra sua casa agora...
― Você está na minha casa?! Tô indo.
Era sério. Desliguei o celular e tudo mais que me rodeava, deixei o carrinho de compras, saí desabalada da garagem sem validar o ticket de estacionamento. Cheguei na Granja batendo todos os recordes de velocidade e multas nos radares eletrônicos da Raposo. A minha mãe me ligando de casa significava encrenca casca grossa. Assalto, incêndio, furacão, o que poderia ter acontecido pra quebrar regras não escritas, mas tão zelosamente respeitadas?
Um pandemônio me aguardava na porta: carros de polícia, furgões de emissoras de TV, curiosos, cachorros vadios, uma pequena multidão se aglomerava na estreita faixa de calçada atrapalhando o fluxo de carros na via de mão dupla que corta o habitualmente sossegado condomínio. Entrei em casa desviando de um agulheiro de câmeras e microfones transmitindo a confusão ao vivo. Queriam uma declaração sobre alguma coisa incompreensível. Minha mãe me esperava aflita.
― Que gente mais sem respeito. Ai, minha filha, isto aqui tá uma confusão!
― O que houve? Que é que esse povo todo tá fazendo aqui? Por que tem essa faixa amarela interditando o jardim de casa?
― Senta um pouco, respira. A polícia prendeu o Beni, estão achando que é ele o Maníaco da Machadinha... Eu sei, é um absurdo total! Policiais revistaram tudo de cima abaixo, dizem que acharam a arma do crime... levaram ele pruma delegacia lá no Centro.
Assim começaram as vinte e quatro horas mais longas da minha vida. Vivi o inferno na torre do Departamento de Homicídios e Proteção à Pessoa. Pude ver o Beni depois de quatro horas de chá de cadeira num corredor do quinto andar de um prédio abafado na rua Brigadeiro Tobias. Ele era mantido sem algemas num cubículo com dois policiais vigiando cada movimento, cada ida ao banheiro. Delegados entravam e saíam, e lhe faziam sempre as mesmas perguntas. Estava cansado, pálido, mas aparentava a sua calma característica. Ostentava a tranqüilidade dos inocentes, confiava na justiça, repetia que aquilo tudo era um grande mal entendido que seria esclarecido em breve.
Acreditei nele imediatamente.
Conheço o homem que dorme comigo todas as noites, Beni é incapaz de fazer mal a qualquer ser vivo. Um cara grande e forte, mas que desarma a todos com a gentileza dos gestos, a candura do olhar, a integridade dos seus ideais. Não, eu não vivi enganada por um psicopata em pele de monge tibetano, Bernardo Felizardo é uma dessas criaturas raras da natureza: um urso vegetariano, um panda da paz. Havia algum engano, um terrível engano.
O doutor Taborda, advogado e tio do Beni, acompanhava todos os depoimentos, orientava as declarações, disparava telefonemas para todos os seus contatos, no entanto, mostrava-se reticente quanto à possibilidade do sobrinho dormir em casa naquela noite de pesadelo. A situação não estava nada boa: a caminhonete dele tinha sido filmada nas imediações do último crime atribuído ao psicopata, buscas autorizadas judicialmente haviam encontrado uma enxada com restos de sangue no galpão da nossa casa. Naquele momento, a polícia científica realizava testes para estabelecer a quem pertencia o sangue.
Em que pesasse toda a influência do doutor Taborda, o desembargador que precisava acordar pra conceder o habeas corpus não acordou, e o Beni dormiu na carceragem do DHPP, após ser indiciado pelo assassinato de doze mulheres. Sentia-me exausta, física, moral e emocionalmente. Vivia um drama sem sentido e sem hora pra acabar. Às duas da manhã voltei pra casa, precisava de um banho, da minha cama, algumas horas de recuperação e sanidade. No elevador do prédio, escutei a conversa de dois investigadores.
― Cê viu a faccia do jack da enxadinha?
― Vi. Cara de paisagem, riquinho que se faz de tanso, advogado picão, e o caralho... É aquele tipo de sonso que os vizinhos saem falando: “nunca poderia imaginar, uma pessoa tão boa, tão calma...”


domingo, 16 de junho de 2013

O Monstro (parte 2)



― Amor, você se importaria de baixar o som da tevê? Pelo menos na hora do jantar...
― Ai, bem, deixa só eu ouvir isso: descobriram mais uma vítima do “Maníaco da Machadinha”.
― Eu sei que é o seu trabalho, o seu projeto... mas, é que me arrepia a maneira como falam desses crimes: os especialistas analisando os ferimentos, criminologistas que distinguem os imitadores do “verdadeiro” psicopata... É muito triste viver numa cidade em que coisas assim viram uma novela macabra que todos acompanham, e ainda tem a polícia, que não consegue, ou não quer, fazer nada. Um horror completo!
― É justamente o que me interessa neste caso, Beni, a nossa cegueira e anestesia quanto aos verdadeiros problemas, a agenda real. O psicopata solitário é o oposto complementar, o inimigo necessário, de uma sociedade-manada que se move por espasmos de medo, indignação, ou paranóia coletiva. Caímos como patinhos na órbita de fascínio do macabro, seqüestrando o debate público para o irrisório, a banalidade do mal.
Beni mantém uma atitude de educada ojeriza a respeito da minha obsessão: escrever sobre o maníaco que há um ano e caqueirada vem matando mulheres na cidade, soa para ele tão razoável quanto revogar a lei da gravidade. A minha dificuldade em pôr o preto da letra no branco da tela parece confirmar o absurdo da empreitada. Mas não desisto. Guardo uma pasta com recortes de jornal, páginas impressas de sites e blogs, cópias clandestinas de exames do IML, fotos, etc., relacionados aos assassinatos em série. No computador, porém, o arquivo O Monstro, nome de batismo do meu romance virtual, continua vazio.
Faço o trabalho de campo. Não fico flanando sem rumo dentro da caminhonete à prova de balas de fuzil do meu namorado seqüestrável ― visito os locais onde as vítimas foram executadas. Um instrumento cortante e contundente, que a mídia apressadamente associou a uma machadinha. Pontos de ônibus, saídas de estações de trem, praças ermas, ruas mal iluminadas, passagens e matagais, lugares em que uma dezena de mulheres encontrou seu fim voltando do trabalho ou da escola. Com o que sonhariam? Será que alguma delas estava tentando escrever um livro?
No curso do professor Asdrúbal, distraio-me observando sua cabeça bronzeada. Sei que vai completar cinqüenta e dois anos daqui a pouco, mas não lhe daria mais de setenta e nove. Tenho um prazer guloso em ver pessoalmente esta grande cabeça de homem, à qual todas as marcas da passagem do tempo só fizeram ajuntar ressentimento e desleixo. Sigo o trajeto de cada uma das suas rugas pela calvície que lhe aumenta a escalavradura do vulto.
― Vejo que vocês são todos muito jovens, ah, não se preocupem, a juventude é uma doença que tem cura: envelhecer. É o que dizia o Nelson Rodrigues. Já a velhice é um problema que não tem cura nenhuma, meus caros. O outro problema que detecto em vocês é bem mais grave: a maioria aqui não está interessada em crônicas. Que pena... Não é um bom momento para a ficção, nunca é, vivemos em tempos de “baseado em fatos reais”, de jornalismo literário, misturas mais ou menos bem sucedidas de relatos biográficos, com personagens históricos e inventados, e por aí vai. Mas, já que pediram, comecemos elencando os principais aspectos do romance: em primeiro lugar, o menos importante, a trama. Tanto faz, escolham qualquer uma ao acaso, bem feitas as contas, deve haver uns cinco ou seis enredos básicos de onde todos os outros derivam. Kurt Vonnegut aconselhava a gastar a cera boa com o melhor defunto: concentrar-se em forjar uma maneira de contar o que vemos, em dar forma à nossa interpretação do mundo. Isto se chama estilo.
― Mestre, dizem que o senhor é o inimigo número um da ficção histórica, procede? ― este é o aluninho pão-com-ovo, leu tudo que o palestrante escreveu, sempre pronto a fazer “escada” para palpitantes polêmicas.
― Não é bem assim, mas passe. O que eu não gosto é de literatura com adjetivos: literatura engajada, de gênero, de minorias, de denúncia, de resistência, et caterva. Costumo dizer que os bons livros, como os bons escritores, têm amigos, mas não têm família, clube, nem partido. São viajantes perdidos, uma comunidade de solitários como os homens-livro de Farenheit 451. O romance, dizia Faulkner, é a vida secreta do escritor, e o escritor, por sua vez, é o dublê de alma do homem... Tenho muita dificuldade em aceitar os pólos sociologizantes ou psicologizantes, para mim, a dialética do fenômeno estético é do tipo onda/partícula: quando se consegue definir uma coisa, perde-se necessariamente a outra. A obra nasce da biografia tanto quanto da história com maiúscula, como construção em curso no dasein, o ser-aí, o que está acontecendo bem diante do nariz. O universo da ficção aumenta o mundo, mas não o explica, porque a ficção precisa fazer algum sentido, o mundo não. A vida é puro jorro de som e fúria, a mais delirante das realidades imagináveis, e por isso mesmo o realismo em literatura terá sempre algo de mágico. É o poste que mija no cachorro, nós fazemos o cachorro erguer a pata pra salvar as aparências...
Minha mente viajava traçando um paralelo entre o professor Asdrúbal e o Beni: o zero à esquerda, e o zero à direita. Asdrúbal, dedica-se a uma atividade inútil, a literatura, zero à esquerda; Beni, abraça causas politicamente corretas, zero à direita; A, feio, pobre e bafo de onça; B, lindo, abonado e cheiroso feito miss; A, melancólico, discurso escalafobético que associa alhos com caralhos; B, de bem com a vida, coerente, o senhor sensato; A, despreza a polpa dos fatos, a linearidade, mira o invisível; B, conversa sempre ao rés do chão, argumenta com dados e moderação. A última invenção do B: uma fábrica de cerdas para vassouras que recicla plástico pet, antes disso, eram as hortas orgânicas. Os restos dessas empreitadas vão se acumulando no galpão dos fundos da casa. Zero à direita quando vem depois da vírgula...
― Você viu que apareceram as primeiras imagens do psicopata da machadinha? Como cê tava pesquisando achei... o que vazou era uma filmagem de longe, escura, o rosto coberto por um capuz. Andando do lado da coitada, mochila nas costas, conversando...
A informação da colega na saída da oficina de escrita me deixou estranhamente comovida, eufórica, mas com uma ponta de inveja ― iam descobrir antes de mim! Comecei a me perguntar se o que eu fazia não era um inquérito paralelo, acumulando pistas como numa investigação de verdade, em vez de simplesmente escrever um relato fantasioso sobre fatos reais. Será que tinha pirado na batatinha achando que realmente fazia o trabalho da polícia? A hipótese mais doida que me ocorria é que tinha me tornado personagem de uma história que não estava escrevendo.
Depois de um chá, dois conhaques e um tarja-preta, já instalada na cozinha de casa, entrei novamente em estado onírico. Pela primeira vez, o devaneio se modificou. O mar tinha a mesma cor de lama, opaco e violento a refletir o céu tumultuado, a natureza travava a batalha definitiva de uma guerra particular, a terra jazia exausta sob uma tormenta inclemente. Agora estou deitada na grama à beira do penhasco, agarrando ferozmente a vegetação ao redor para não ser arrastada pelos ventos fortes. Lá em baixo, ouço as ondas rebentando nas pedras. Deitada ali, percebo o ponto de cisão de quem não consegue se levantar ou se segurar. Preciso me colocar de pé outra vez.


sábado, 8 de junho de 2013

O Monstro (parte 1)



            Eu mesma não sei por que comecei mais este curso, mais uma oficina de escrita criativa, mais uma vez no sentada num banco escolar com a cabeça em uma galáxia distante. É sempre a mesma história: começo a milhão, faço todas as tarefas pedidas, e no final sobra o mesmo retrogosto de missão cumprida e inútil. Desta vez o álibi é nenhum, trata-se de um workshop sobre crônicas, um gênero que não pratico, não gosto e não interessa para o projeto em que estou mergulhada: escrever meu primeiro romance.
            Um estranho sortilégio me deixou incapaz de escrever uma linha além do título no arquivo omonstro.doc que jaz intocado na área de trabalho do meu notebook. Pelo menos o professor Asdrúbal é completamente passado das idéias e as aulas são um primor de nonsense e bizarria, o que no fundo ajuda a distrair da minha paralisia imaginativa.
            ― Do que fala o cronista? De zero a tudo, mas, principalmente, sobre o “nada”, a falta de assunto é o terror cotidiano desta igualmente cotidiana escritura. A crônica diária não é para os fracos das teclas e da alma, reza a lenda que um famoso autor só aceitou uma coluna semanal no falecido JB depois de ter escrito cem crônicas. As quais, obviamente, nunca utilizou durante os trinta anos que durou a sua colaboração naquele jornal... O cronista escreve rente à realidade, falando, por assim dizer, ao pé do ouvido do seu público, como os radialistas. E a resposta dos leitores, em tempos de internet, é escutada de imediato, seja na forma de cliques, de comentários, ou de violentas cornetadas, quando não, agressões verbais. Não há tema nobre ou plebeu na crônica: a grande tragédia do momento, a mais desbotada das banalidades, servem tão bem quanto mal (depende sempre do talento) para esta prosa em traje de passeio. Se o poeta é um fingidor, o cronista é um filtrador: separa e junta, personaliza a crítica, radicaliza contemporizando, discrimina e mistura; no seu liquidificador ficcional se debulham a casca dos faits divers e a polpa das grandes questões da humanidade...
            Sei, sei, essas coisas do tipo: onkotô, onkovô, kenkosô... hmm, tio Asdrúbal está atacado hoje, esse “famoso autor” perigas de ser o Sabino. Ele escrevia no Jornal do Brasil? Daqui a pouco vai falar do Rubem Braga. É infalível.
            ― ... um grande cronista é sempre um grande artesão da língua, já o grande autor nem sempre produz o bom cronista. Vamos a um grande entre os grandes: Machadão. Nos romances e contos machadianos sentimos o retinir do bronze da imortalidade, a beleza do que é eterno e definitivo; ao passo que nas crônicas, comparece o homem Machado de Assis, os ignóbeis preconceitos, miopias e limitações do censor de costumes. Vocês sabiam que ele censurava peças de teatro? Vejamos agora o último parágrafo desta crônica de Rubem Braga, do livro Recado de primavera: “Assim pois, contemplando minha vida pregressa nesta bela tarde de verão quando há evanescentes nuvens róseas lá longe sobre o mar de Ipanema, e me sentindo mais ou menos conformado com a minha solidão, lembro-me de que o nome latino desse nobre galináceo e caça fidalga, o macuco, é Tinamus solitarius, e me recordo de ter visto ovos de macuco, e retorno à primeira frase desta pequena composição jornalística chamada crônica, e digo: todos os telefones eram pretos e todas as geladeiras eram brancas, mas os ovos do macuco já eram e ainda são ― azuis. Esverdeados, porém azuis”. Percebam que o conceito-chave desta “pequena composição jornalística”, e da crônica de uma maneira geral, vem a ser justamente a “evanescência”: as nuvens evanescentes da tarde de Ipanema, a transitoriedade da vida, a solidão do autor e do nome latino do macuco, a evanescência dos ovos “esverdeados, porém azuis”. Graça, liberdade e dignidade clássica, o homem é o estilo na escrita do nosso cronista maior.
            Tudo isso é muito belo e muito bom, porém, não me rende uma mísera composição jornalística, nem sequer algumas linhas de prosa satisfatória para o livro que estou, ou deveria estar, escrevendo. Sempre ouvi com uma certa incredulidade os relatos de escritores sobre o famigerado bloqueio criativo, mas nunca pensei que aconteceria comigo. As idéias costumavam brotar como cogumelos depois da chuva, vinham-me durante o banho, na plataforma de embarque do metrô, ou na fila do caixa da padaria onde tomo o café da manhã. Algo tão natural como espirrar ou marcar uma consulta no dentista.
            Despeço-me dos colegas de curso e vou para o estacionamento pegar o carro do Beni, meu namorado. Uma verdadeira mão na roda agora que troquei a Pompéia por Cotia. Depois de dois anos de namoro resolvemos morar juntos, isto é, mudei para a imensa casa dele na Granja Viana. Beni é uma graça de rapaz: grotescamente rico, limpinho, do bem, e... absolutamente incapaz de terminar qualquer uma das suas muitas iniciativas pra tornar o mundo um lugar melhor. Seria o homem ideal se eu não implicasse tanto com o nome dele: Bernardo Felizardo. Que tipo de idiotas faz rima rica com os sufixos do nome e do sobrenome do filho único?
            Brega no úrtimo. Pra sorte deles, os pais já tinham morrido quando o conheci, caso contrário, não deixaria barato uma tosqueira dessas. Enfim, cada cabeça, sua sentença. A bem dizer, não sei onde estava eu com a minha quando desisti da carreira de autora de livros infantis. Tá certo, eram todos muito ruins, mas vendiam e vendem que nem pão quente. Bela troca fui fazer: de escritora de livros de merda, pra escritora de merda nenhuma. Agora estou aqui, empacada, sem vender, nem escrever. As únicas atividades que preenchem meu tempo são esses cursos e ficar zanzando pela cidade sem rumo no carro blindado do Beni.
            Pra não dizer que o meu cérebro não tem produzido nada, vêm ocorrendo dois tipos de fenômenos que se repetem: um devaneio diurno e um pesadelo. O sonho não varia muito: estou no quarto de dormir, na cama de casal que pertenceu aos pais do Beni, suíte que ele insistiu que ocupássemos, embora, a princípio, eu tivesse recusado por achar mórbido demais. Estou sozinha na cama. Ouço um barulho vindo do banheiro, pergunto: “Quem está aí?”, nada, ninguém responde. Sento-me na cama, nua, então vejo, recortada na contraluz, a silhueta do meu namorado saindo do toalete. “Que susto, Beni, por que não me respondeu?”. Ele se aproxima em silêncio, e me esbofeteia violentamente com as costas da mão.
            Durante o dia, a cena que me vem é rigorosamente a mesma, sempre. Estou em pé em meio a uma tempestade, à beira de um precipício. O mar revolto lá em baixo, quebrando violentamente, e eu de braços abertos, cabelos revoltos, pés no chão, coração nas estrelas, a mente conectada a toda aquela selvageria em volta, firme, enfrentando tudo, sem me perder nem me render às forças da natureza. Dizem que o melhor caminho diante de um abismo é dar um passo atrás... Eu ouso permanecer em pé.

            

domingo, 2 de junho de 2013

O último fim de mundo do milênio (epílogo)



PROFESSOR CAMARINHA & NATASHA 23:50

            Um estrondo, vindo da porta dos fundos. Vozes. Vários homens falando ao mesmo tempo. Em seguida, escutaram o ruído deles entrando pela casa, derrubando objetos, conversando entre si de um cômodo para o outro. Não se distinguia o assunto. Os dois se olharam, os olhos do professor expressavam terror e estupefação, Natasha calculava. Os passos convergiam agora para a sala.
            “Mas que... será possível?... não, este condomínio tem muita segurança, não pode ser...”
            “Fica em silêncio e não sai da tua posição. Presta atenção, vou soltar as algemas, mas continua com as mãos pra trás. Pode vir a ser a útil”, Natasha recolocou a capa de vinil e se encostou num buffet a três passos de distância da coluna onde jazia o escravo sexual. Aparentava calma diante do perigo.
            Quilô, o brucutu do bando, arrebentara a porta dos fundos com um único pontapé. Metaleiro e seus homens saíram roubando tudo que podia ser carregado: jóias, celulares, televisão de tela plana, fax, computador, até mesmo o microondas entrou no butim. Os seis foram chegando uma a um à sala, todos paravam, estupefatos. Esperavam encontrar o Exu-caveira, mas não a cena que viram. Parecia a brincadeira de criança conhecida como ‘estátua’. Calunga quebrou o feitiço.
            “Ca-ca-caralho, ma-mano, o ca-cara tá todo ca-cagado!”
            “Que é que tá acontecendo aqui?”, refeito da surpresa, Metaleiro reassumia a voz de comando.
            “Gozado, parece que é você que deveria responder essa pergunta...”, Natasha usou sua voz mais calma para falar, enquanto isso, parecia muito ocupada com a carteira do professor.
            “É, afinal de contas, esta casa é minha e vocês...”, a frase do professor tentou emular o tom firme da Dominadora, mas foi se acoelhando, diminuindo, até terminar num murmúrio ininteligível.
            “Que porra é essa, uma festa de carnaval? Por que esse cara tá amarrado com essa máscara, todo lanhado e coberto de merda, hem?”
            “Escute, moço...”
            “Cala a boca, mané! Tô falando com a mina, que é quem tá de chefia aqui pelo visto”, Metaleiro podia não ter MBA em Harvard, mas isso ele tinha sacado de primeira.
            “Isto aqui é uma festa privada, mas não somos nós que devemos explicações, percebe?”, ela demorou um tempo excessivo para responder, e quando o fez, mal levantou os olhos da carteira do professor. Contava as notas de dinheiro vivo.
            O Velho se aproximou de Metaleiro para falar, carregava um fax no braço esquerdo.
            “Se liga Metal, isso daí é um bagulho de pervo. Chama sócio-comunismo, um bagulho assim, os bacana contrata umas vagaba pra esculachar eles, cuspir na cara, enfiar prego... coisa de granfo”.
            “Aí mano, da próxima vez tu pode economizar, esculachar bacana é com nóis mesmo, vacilão!”, a gargalhada do chefe desencadeou o riso geral. Passado o momento de distensão, voltou-se para Natasha, cuja atitude o irritava desde o começo: “Ô vadia, tô achando que tu não tá entendendo bem a parada... vamo largando aí o que não te pertence!”
            “Não me pertence? Isto daqui é o meu pagamento. Serviço feito, pagamento feito. Não pego o que é dos outros, só o que é meu”.
            “Quilô, dá uns pega nessa mina que ela já tá me gastando”.
            “Demorou, Metal”.
            Quando todos os olhares se voltaram para ela, o revólver já estava apontado para o grupo de invasores. Natasha, com notável timing cênico, aproveitou para engatilhar a arma. O clique seco ecoou na sala silenciosa.
            “Grandão, deixa eu te explicar uma coisa: este é um trinta e oito cromado, não trava nunca. Eu atiro bem pacas. Sabe onde vou mirar? No teu saco. Você vai cair gritando e eu ainda vou ter uma bala pra cada um dos teus amigos, que não vão te ajudar. Com sorte, você sai vivo e capado dessa, mas, se o resgate demorar, tu vai sangrar feito porco até morrer nesse lindo tapete persa”.
            “Qual que é mina, tá bem loca?”,a voz de Metaleiro traía uma vacilação, já bem menos impositiva.
            “Tô não, cara. Sou uma profissional, vocês não. Nenhum de vocês tá armado. Vamos fazer um acordo: vocês saem por onde entraram, levam o que têm na mão e o professor aqui não presta queixa. Afinal, esta é um situação difícil de explicar numa delegacia, certo?”
            “Quem garante que cês não chamam os gambé na hora que nóis sair? O que mais tem neste muno é Judas, fia...”, Metaleiro vacilava, os outros confabulavam em voz baixa.
            “Não vai ter essa. Somos todos gente da paz, não é mesmo? E depois, maior preju, começar o ano com uma azeitona quente na barriga...”
            Os baderneiros se retiraram resmungando. O trato era bom para todos, ninguém queria mesmo forçar demais a corda. Já tinham o suficiente para a festa.
            Natasha pegou o carro e saiu do Sunrise Village no momento em que os fogos estouravam nos céus da metrópole. Estava de bem com a vida. Apalpou a arma de brinquedo no bolso do casaco. Assim era vida dela, cheia de emoções. Era isso que ela era: uma verdadeira artista.