domingo, 23 de junho de 2013

O Monstro (parte final)



Cheguei moída a casa, um trapo de gente. Precisei alimentar os cachorros, esquecidos durante a roda-viva daquele dia ensandecido. Liguei o alarme, tranquei as portas e me recolhi ao quarto, sentindo a falta do homem que acusavam de assassinatos frios e sem motivo. Enquanto escovava os dentes lembrei que não me alimentava há quase doze horas, ainda assim, mandei dois tarjas-preta pra baixo. Mergulhei obtusa num sono agitado.
Acordei com os meus berros, suada e com o coração aos pulos, segundos sem conta se passaram até perceber que o sol raiava através da janela dissipando os últimos restos do pesadelo. A cena das outras noites: Beni saía do banheiro da suíte inteiramente nu, sem falar comigo, sem uma única palavra, acercou-se da cama e me esbofeteou. Antes que conseguisse reagir, ele saiu do script costumeiro: me virou de bruços com violência e me sodomizou.
Ainda ouvindo os grunhidos da besta sub-humana que me atacara em sonho, desci pra cozinha. Preparei um café forte. Continuava incapaz de me alimentar com o que quer que fosse de sólido. O estômago tinha um nó como as bexigas de festa. Enquanto queimava distraída a língua saburrenta e amarga no café fumegante da caneca, uma idéia cruzou o emaranhado de fios soltos dos meus pensamentos matinais. Fui até o depósito de ferramentas e trecos nos fundos da casa.
Aquele galpão, lacrado pela polícia no dia anterior, tinha um mezanino que se acessava por uma estreita escada caracol externa à construção rústica. Era o escritório particular do Beni. Um lugar que ele não deixava ninguém entrar, e só eu sabia onde se escondia a chave. Algo me sussurrava que as respostas estariam lá, organizadas em pastas e gavetas tão ao gosto do meu namorado sistemático. Meia hora de buscas decepcionantes, e nada de nada, exceto folhetos, desenhos, plantas, textos e um PC antigo que não revelou nenhum arquivo digno de nota.
Louca, desorientada, saí derrubando os livros das prateleiras, esvaziando pastas etiquetadas, rasgando folders, derrubando resmas de papéis meticulosamente organizados. Parei, envergonhada da infantilidade daquele acesso de fúria. Por estranho que pareça, lembrei das arengas do professor Asdrúbal:
― Escrever é a forma mais extrema de exposição, é afrontar o maior dos perigos: se expor diante de si mesmo, sozinho, no centro da arena das ilusões perigosas. Não esqueçam o conselho de Michel Leiris: introduzir pelo menos a sombra do chifre de um touro numa obra literária.
Comecei a recolher a bagunça espalhada no chão, não queria macular aquele santuário. Apesar do sonho horrível que me assombrara durante a noite, continuava convencida da inocência do Beni. Um envelope amarelo chamou a minha atenção, tinha o meu nome sobrescritado. Esvaziei o conteúdo na mesa do computador: anotações rasgadas, algumas, desamassadas e provavelmente resgatadas da lixeira, outras, reconstituídas com durex. Reconheci a minha letra nelas, eram rascunhos manuscritos, praticamente rabiscos em sua maioria, material que por algum motivo não quis passar pro notebook.
Sentei pra ler. Nessa hora, meu celular tocou. O doutor Taborda.
― Excelentes notícias: o Beni vai ser liberado hoje, ele tem álibis confirmados para cada dia e hora em que ocorreram as mortes. A polícia tá ouvindo agora as testemunhas.
― Ai, doutor Taborda, que coisa maravilhosa o senhor tá me dizendo. Eu sempre acreditei nele, não podia ser verdade...
― Claro, claro. Vai pra lá por volta do meio dia buscá-lo, tá?
― Ok, muito obrigada por tudo, doutor.
Desliguei. Respirei fundo, a minha vida parecia enfim voltar ao normal. Sentia um alívio imenso, mas aqueles papéis ainda me inquietavam. Na certa, o Beni os guardara achando que eu ia acabar precisando deles. Ajeitei os óculos de leitura.
“Considero que escrever é um insulto, uma forma de desacato aos poderes constituídos, à moral, e aos malditos dos bons costumes, mas é a minha condição para continuar. Eu me alimento disso. De arte, de palavras. De vida. Amo estar viva, sentir-me viva enquanto os outros morrem. Tanta gente morre todos os dias à minha volta!”
Uma lista de nomes:
“Andressa Filgueiras. Sidinéa Guerra Santos. Maria Aparecida Donizetti. Eduarda Flores Alves. Regina Sílvia de Arimatéa Gonçalo. Maria Gladys de Oliveira. Dorotéia Maria Fernandes. Jucilene dos Santos Silva. Sara Francine Mota Palha. Fabiana Pereira. Eliane Célia Bergamim. Valdenízia Borges.”
“O que não me contam, eu escuto atrás das portas. O que não existe, faço acontecer. O que não sei, adivinho e, com sorte, você adivinha sempre o que, cedo ou tarde, acaba acontecendo.”
Quando é que eu tinha escrito aquilo? E por quê?
“Tende piedade de mim, Senhor, são tantas as vagabundas, e eu tão sozinha.”
“Sigo-as pela rua, sigo velhinhas, senhoras respeitáveis, virgens e prostitutas, agoniada e indecisa entre aquela que retoca o gloss molhando os lábios com a ponta da língua, e a viúva toda de preto, as pernas exibindo a pelugem carente de depilação, sigo a dona de casa que vai às compras, as casadinhas assanhadas e as estudantes de cursos noturnos.”
Uma comporta se rompeu, um tropel de imagens, vívidas como se estivessem diante dos meus olhos, passeavam na minha cabeça, ouvia gritos agudos, pedidos de socorro, estertores demorados. Toda uma parte represada da minha vida voltava com a força de uma multidão.
Fui fazer uma malinha com as coisas de que ia necessitar. Acho que agora estava pronta pra pegar o tal touro à unha.