Sérgio
chegou em casa à noite bastante cansado. Tomou banho, mudou de roupa e só então
se juntou a Doralice na sala de visitas. Tendo acabado de ligar a TV quando a
empregada os chamou para jantar, não a desligou quando foram sentar-se à mesa.
― Não gosto
desse tom, o foco excessivo em você!...
― Que tom? Que
foco? Do que é que cê tá falando, Doralice?
― Aí em cima,
no primeiro parágrafo: Sérgio isso, Sérgio aquilo, chegou, tomou banho, se
trocou, ligou a TV... parece que só você trabalha, que eu passei o dia inteiro
em casa coçando!
― Mas... eu
não falei nada disso! Tá louca?
― Claro que
não foi você, Pedro Bó. Quem falou, ou melhor, escreveu isso, foi o narrador
neutro em terceira pessoa que nos observa.
― Como assim, que
terceira pessoa? Cê tá me dizendo que tem um amante, ou que tem alguém espiando
a nossa vida?
― Não, Sérgio,
quem espia as nossas vidas é o Obama. Esse cara, ou essa cara, escreve a nossa
história porque ela acontece, e a nossa história acontece porque alguém a
escreve. Vai ver nem podemos decidir nada na trama...
― Da minha
parte, declaro que, tirando o meu chefe, a minha mulher, os filhos, a mãe, o
cachorro, a sogra, ah, e a empregada, mais ninguém manda em mim ― sacou o
celular e pôs-se a checar mensagens.
― Viu só, viu
só? Você não ia pegar o celular, “ele” precisou colocar a informação aí porque
deve ter alguma função na história em que nos meteu!
― Sabe o quê,
meu amor? Você anda tomando aperitivos a mais antes do jantar, não cai bem com
os antidepressivos... estava pra dizer há algum tempo. Eu quis pegar o celular
e ponto, ninguém decide por mim, lhe garanto.
A empregada já
dera o jantar das crianças e supervisionava seus banhos quando Sérgio se
levantou da mesa sem terminar de comer para lhes dar o beijo de boa noite. Doralice
deixou-se ficar ali, o olhar perdido, sem escutar o noticiário mundo-cão que
vinha da sala de TV.
― Tá mais
calma agora, meu bem? ― ele adotava um tom conciliador, temia mais uma das
freqüentes brigas que irrompiam depois das crianças serem postas para dormir.
Qual a
diferença entre este homem e qualquer outro? Pertencemos àquele grupo com renda
acima da média, filhos em colégio particular, duas viagens por ano, casa de
campo em condomínio privado, um círculo de amigos amplo... Não falta nada,
nossa vida é quase tão simples e protegida como parece ser. Estamos casados há
dez anos, não se pode dizer que o Sérgio dê a impressão de ser mais jovem do
que é, mas ao menos ele dá a impressão de se sentir mais jovem do que já foi.
Mantém curtos os cabelos que começam a ficar grisalhos, veste as mesmas roupas
e adota o comportamento dinâmico, expansivo e superficialmente cínico do seu
grupo de amigos motoqueiros. Born to be
wild.
― Ei, ei, ei,
não precisa pegar pesado comigo assim! Temos sempre que brigar depois que as
crianças vão pro quarto?
― Ah, então
agora cê tá acompanhando a narração em “off”? Quando você ficava bonito na foto
não te incomodava tanto, né?
― Doralice,
por que você sempre tem que complicar tudo? Por que tudo entre nós acaba
virando uma tragédia grega, um dramalhão mexicano?
― Porque estou
tentando te abrir os olhos, Sé... Toda vez que proponho um assunto sério, você
vem com essa de que tô pegando pesado. Fora do teu trabalho, cê desenvolveu uma
alergia a qualquer coisa que te lembre da realidade!
― Pronto, lá
vem a sua acusação de costume: o Sérgio não entra em contato com a parte
difícil da vida, o Sérgio não liga, o Sérgio vive num mundo só dele... Talvez
seja melhor me plugar como você, aí nos tornaremos a família faixa preta,
depois de você e das crianças, só falta eu também tomar remédio controlado!
― Sérgio, a
gente se parece com todo mundo. Não somos diferentes de ninguém à nossa volta,
já reparou nisso?
― E isso é tão
ruim assim?
― Amor, talvez
nem sejamos gente de verdade, mas personagens de alguma história que não nos
pertence! Isso é suficientemente grave pra você dar alguma atenção?
― Está tarde,
vamos dormir Dodô. Paz...
Não adianta,
nunca adianta. Sérgio deixa toda a energia de que dispõe na mesa de trabalho,
todo o resto deve deslizar sobre trilhos e não dar trabalho. A vida íntima para
ele é um playground, nunca um assunto sério demais, uma questão. Tomei o
remédio pra dormir e deitamos. Ele adormeceu antes de mim.
2 comentários:
Caro filipe com i,
Bem bolado!
Abraço
Interessante o entrosamento da personagem que olha a narrativa pelo lado de fora e a ironia subtil do narrado.
Lídia
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