quarta-feira, 26 de março de 2014

UM CALENDÁRIO DOS MORTOS
















Lá fora era domingo, e o mundo resplandecia de sol e ingênua alegria.
As pessoas davam mil voltas na praça, ausentes e distraídas, feito peixes num aquário. Uns liam o jornal, outros falavam ao telefone, ninguém se olhava nos olhos.  Povo besta!

Sentada na beira da cama,  arredou uma mecha de cabelo da testa,  pensando noutro domingo, outro quarto e outra vida. Bem diferente daquela, vida com gosto de vida, vida  com cheiro de vida.

Na beira da cama, meditou sobre o quanto já tinha navegado através dos igarapés e dos igapós do amor, e nas muitas vezes que já tinha se perdido e corrigido a rota. Muitas vezes. Muitas vezes...

Na beira da cama, pensou que nunca tinha vivido um Amor, com "A" maiúsculo. Um amor grande e escandaloso, daqueles que nunca se acabam ou que, quando acabam, costumam deixar cicatrizes, patrimônio, bens imóveis, móveis e semoventes, descendência, herdeiros necessários e legatários...

Pensou, na beira da cama,  que sempre vivera somente aquele amor efêmero e indecente de escambo, que nada deixa senão a marca ensebadinha de digitais na borda da alma.

Lembrou  que tinha pertencido, pelo menos em tese, a vários homens. Dos quais, todos mortos: era, então, a ex- amante dos mortos. Mortos recentes e mortos antigos, que quando muito ficam vivos na lembrança dos vivos, assombrando as esquinas vazias da memória e entristecendo os domingos, sem querer ir embora de vez.

Da beira da cama, olhou a folhinha amarelada na parede amarelada, que dizia que já era domingo, mas ela sabia que precisava ser paciente, precisava saber esperar, pois os mortos sempre se atrasam .



foto: "Mulher Nua" - Carybé

(CASOS LIGEIROS 17/01/2009)

4 comentários:

José Doutel Coroado disse...

Cara Dalva,
Gostei!
Bom!
Abraço

filipe com i disse...

Vida com cheiro de vida - genial!

angela disse...

Bonito...a sempre insatisfeita alma feminina.

Débora Beriteli disse...

Lindo!
Gostei muito!
"Os mortos sempre atrasam"