“Onde
você está?”
“Aqui.”
As segundas
feiras também são tuas. Junto com todo o resto.
Ele pensou.
É preciso o
caos em si para dar à luz uma estrela dançarina. Foram necessárias umas poucas
horas de blecaute para confirmar, ponto por ponto, as suas doutrinas por tantos
anos ridicularizadas.
Não era a
melhor ocasião para um ajuste de contas com o seu passado, no entanto,
comprazia-se mentalmente imaginando o terror pânico em que se encontrariam seus
críticos.
“Achou as
velas?”
“Sim, estão comigo.
Vamos pegar as mochilas.”
O horror se
alastrava na cidade e no mundo com a sanha dos grandes incêndios naquele
instante. Pessoas de olhar perdido vagando em busca de familiares. Saques
generalizados pelas ruas.
Parou. Esperou
que o alcançassem.
O odômetro da
bicicleta marcava 12,3 Km .
Ainda não haviam deixado o aglomerado urbano, mas já estavam na rodovia que os
levaria para longe do perigo maior. Uma jornada de sessenta e seis quilômetros
no total, caminho seu velho conhecido.
Avançavam
cautelosos pedalando pelo acostamento ou entre os carros, abandonados no
megacongestionamento que paralisara as autoestradas logo no começo do apagão. A
população em fuga desordenada simplesmente entupira as rotas de escape tanto na
direção do litoral como do interior. Os faróis dos veículos desertados pelos
ocupantes iluminavam a pista escura auxiliados pelo brilho ralo da lua
minguante.
Por trás dos
morros no céu noturno vislumbravam as projeções alaranjadas das labaredas erguendo-se
atrás deles, na direção da cidade. Estrondavam explosões ao longe, constantemente,
ouviam os estampidos secos dos tiros.
“Cadê nossa
filha?”
“Ficou um
pouco pra trás na subida, o Bob está com ela.”
“O essencial é
agrupar. Só vamos conseguir se estivermos juntos. Hmm, não me agrada fazer isto
de noite...”
“Nem a mim.
Mas a gente não tinha escolha, a cada minuto a situação piora.”
“Aconteceu
exatamente o que eu sempre disse: os grandes ajuntamentos de gente se tornaram
ratoeiras a ser evitadas.”
“Vem pra cá
filho, vem.”
Sim, tudo
acontecia como ele sempre previra.
Sentia-se
vingado e ao mesmo tempo abismado com o que presenciava à sua volta. Jamais
duvidou que seria daquele jeito, mas reconhecia internamente um contragolpe de
susto com a realização integral das suas conjecturas. Como se aquela catástrofe
espetacular estivesse desde sempre destinada a ser crida, preparada, até ardentemente
desejada, mas nunca de fato vivida.
Encare a
realidade de outra forma, que a vertigem passa.
Isso ele
passara a vida dizendo aos outros. Agora precisava repetir o mantra a si
próprio e ao seu grupo de sobreviventes: a mulher, o filho caçula, a filha e o
namorado dela. O moço percebeu de imediato a impossibilidade de retornar ao distante
bairro dos pais, juntou sua scooter aos quatro bicicleteiros em retirada.
Não previra
esta possibilidade: uma boca a mais. De toda maneira, um rapaz no auge da força
não era auxílio desprezível numa situação extrema; pesava nos contras o fato de
o Bob ser virgem em qualquer tipo de treinamento.
Um comentário:
Fim de mundo. Me lembrou um amigo, recentemente falecido, que lia só ficção científica, montes e montes de livros. Morava num porão, amontoado de livros de ficção... outro mundo, outro planeta mesmo. Tem que se segurar em alguma coisa pra não entrar em órbita!
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