domingo, 6 de julho de 2014

Blecaute (2)


O ódio é o irmão mais velho do amor.
Sempre pregara que, sob condições de exceção, prevaleceria o primogênito sobre o caçula, mas só nos mais turvos cenários distópicos imaginara a guerra de todos contra todos que testemunhava abismado.
Pode ser que tenham existido conflitos que mobilizaram somente a destruição “necessária”, por exemplo, o mínimo de agressividade implicado na defesa de si mesmo. O que se via era uma explosão de violência ilimitada, racismo, xenofobia, assassinatos aleatórios, estupros, destruição de monumentos e habitações, tortura, assaltos e violações de todo tipo.
Um Carnaval do Mal. Fora de época e de controle.
Afetos de ódio extremamente potentes se desencadeavam materializando a fúria indiscriminada de um dragão de sete bilhões de cabeças. O blecaute atingira todo o planeta, e ninguém, na internet congestionada, sabia explicar a razão de tantos sistemas independentes caírem ao mesmo tempo em todos os lugares.
Passadas cinco horas sem luz, caiu a internet. Os celulares já estavam mudos a essa altura. No breaks, baterias e geradores responsáveis pelos backbones dos grandes servidores foram rapidamente consumidos pelo estado de hiperconectividade que seguiu imediatamente ao apagão.
A desorientação, por incrível que pareça, piorou ante a falta de transparência dos exércitos e das instituições de defesa: naquela emergência global, os militares pareciam mais preocupados em proteger armas e instalações nucleares do que em atender a população aflita.
Uma segunda feira que escoava modorrenta e trabalhosa como as outras, até quinze minutos depois das três da tarde. O que teria causado aquilo? Algum vírus de redes de geração e distribuição de energia? Uma tempestade solar?
Aconselhou o namorado da filha a desligar o telefone para poupar a bateria, iam necessitar do GPS para achar a trilha no escuro. Instintivamente, consultou o velocímetro: faltavam os derradeiros quilômetros que os separavam da chácara, a maioria deles numa estrada de terra que subia acentuadamente na parte final.
“Quanto ainda falta?”
“Treze. Dá uma boa golada no seu squeeze, você tá bem cansado... mas não podemos parar agora, no nosso sítio estaremos em segurança.”
“Pai...”
“Que foi?”
“As pessoas são... assim?!”
“Bom, elas ficam assim nas grandes calamidades...”
“Mas é que, não entendo...”
“Você sempre me ouviu dizer que existem apenas duas categorias de indivíduos, os que são maus e os que são muito maus...”
“... mas nós chegamos a um acordo e chamamos os maus de bons, e os muito maus de maus. Eu sei.”
“Me desculpe.”
“Pelo quê?”
“Por ter trazido você pra este mundo. Você merecia outra coisa.”
O menino não compreendia. Onze anos só. Não era uma boa idade pra rasgar os véus da ilusão e ser apresentado de forma tão crua à crueldade, ao medo e à estupidez que emergem no ser humano quando as instituições portadoras do sentido derretem.
Não compreendia, sobretudo, a gratuidade.
Aconteceu quando saíam de casa. Ele escutou um assobio, parou de pedalar pra ver quem chamava. Olhou pra trás e viu um rapaz magro, de cabeça baixa, usando uma camiseta surrada e um boné que lhe cobria os olhos.
Quando viu a faca na mão, o desconhecido já estava a um metro. O garoto tentou sair com a bicicleta, virou-se de lado rapidamente, e sentiu uma ardência terrível na barriga. Como uma ferida mergulhada na salmoura.
Viu a faca cair no chão: era de cozinha, daquelas pequenas, serrilhadas. O estranho não tentou roubar nada, nem mesmo a bicicleta. Só queria machucá-lo.
Olhou nos olhos do agressor, não havia dor, não havia raiva.


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