quinta-feira, 19 de junho de 2014

como conheci minha irmã (final)


            ― Pra você, tudo é muito simples, se é pra defender seus interesses, você vai pra cima de quem for. A lei me dá direitos pelos anos que estamos juntas, e moralmente sua mãe reconhece, pus pão e leite nesta casa sozinha enquanto você crescia... ― Dila começava a abaixar a máscara. Prefiro.
            ― Não acredito que vai permitir esse absurdo ― encarei minha mãe duramente, ela escondeu o rosto no lenço ― A casa da praia foi construída com o suor dos seus pais, você não vai nem esperar a vó morrer pra fazer essa loucura?
            ― Entenda, meu bem, a vida não é fácil, a Dila foi muito legal com você, a Raquel... e comigo... ― recaiu no chororô.
            ― Quem não está entendendo é você, mãe, mais uma vez estão se aproveitando da senhora. E desta vez com o seu de acordo! Que mais vai ser? Ela leva também os móveis, a máquina de lavar, a TV, as samambaias?
            ― Tudo tem que virar uma discussão sobre coisas materiais?, há bem mais aqui pra resolver do que dinheiro, bens, tem o lado humano, da convivência...
            ― Lado quê?! Só o que eu estou vendo é você adiantar o seu lado, Edilamar. Você quer levar na maciota, dar a coisa por fato consumado, e fica nesse quas-quas-quas de lado humano, mas na real está se crescendo pra cima de uma pessoa que cuida de duas velhinhas!
.― Sabe, rapaz, às vezes fico tão feliz de te ver crescendo na vida, justificando todo o sacrifício que fizemos por você, mas outras eu me pergunto que tipo homem está se tornando.
― Quer saber mesmo, Dila? A única coisa que cai do céu de graça é chuva. Sou o tipo de cara que não gosta nada, nada, que façam ele de otário. Morou? ― o tom, entre condescendente e cínico, daquela a quem já havia chamado de mãe Dila começava a me tirar do sério.
― Hã-hãm... ― minha irmã pausou o bate boca durante escassos segundos, suficientes para dispersar o clima. Ficou por aí.
― São combinações que já estão acertadas, querido, melhor agir com a cabeça nessas horas. O casamento acaba, mas a família continua... ― mamãe conseguia terminar de me irritar passando o pano praquela velhaca.
― Há um detalhe ― neste ponto ela voltou o rosto na direção da mudinha ― a Raquel vai ficar comigo.
Ninguém conseguiu falar durante um bom bocado, apenas ficamos ali, comendo mosca na sala povoada de dores passadas e presentes. Naqueles minutos imensos de tédio enraivecido, senti a passagem de uma presença: o rio subterrâneo que corre pelos porões da imaginação, e que, no entanto, determina todo o relevo da nossa vida de superfície. Os quatro se levantaram. Depois, sentamos novamente, mudando uma posição no sentido anti-horário. Raquel arrastou levemente o sofá de um lugar ficando mais próxima a Dila.
― Então é assim que a família continua, dividida ao meio?! Abre o olho, mamis, a bola nas costas que você tomou é dupla!
― Escuta aqui, cansei das suas provocações. Você espreme tudo e todos que encontra, o resultado disso é que perde o limão, a limonada, e no fim só há bagaço à sua volta. Onde você pisa nem erva daninha cresce.
― Tá de boa, né Dila?, aposentou pelo estado e pela prefeitura, dá uma reformada lá em Mongaguá, e pronto, cama, mesa, banho e roupa lavada. Sensacional essa sua mentalidade de funça, amarrou o jegue na sombra, aí é só correr pro abraço. Na manha do gato.
― Como te dói saber que dependeu de mim durante tanto tempo, né moleque? Você ainda vai ter uma pilha de grana, mas nada poderá apaziguar esse bicho que carrega aí dentro.
― Aí, até é bom você e a mongolóide saltarem fora, vocês não pertencem mesmo, têm cabeça de pobre. E pobre é igual a lombriga, quando sai da merda, morre.
― Olha como fala, seu... !
― Acha que não sou capaz de te dar uns tapas por causa da Maria da Penha?
― Que é que você quis dizer com traição em dobro? ― minha mãe parecia voltar de um transe, o olhar distante gradualmente se focando.
― Ainda não se ligou, não? Bem debaixo das nossas barbas, quem me cantou a pedra foi o P2 que mandei seguir essa daí. As duas já até andaram de mão dada em Mongaguá, se pegam dentro do carro. Não botei uma fé quando ouvi.
― Tá dizendo... quer dizer que a Raquel, a Dila...?
― Estou te dizendo que a sua querida Edilamar é uma porra de um Woody Allen, criou pra comer.
― O mesmo fez você.


2 comentários:

Anônimo disse...

Tá um Nelson Rodrigues!!! Show!!

Anônimo disse...

Tenso, hein!