quarta-feira, 16 de setembro de 2015

a menina sentada (2)





            Gozado como isso me importava tão pouco naquele momento, estava mais preocupada com o paradeiro da minha irmã: não a via nem ouvia em lado nenhum, mas distinguia sons estranhos vindos da cozinha. Como se estivessem jogando todos os utensílios ao chão.
            — Onde você está? Já acordei, tô pronta.
            Silêncio completo.
            Saí a paso doble em direção à área de serviço, e foi então que a vi, ou melhor, senti. Dei um giro em câmera lenta no centro da sala. Antes mesmo de me virar, sabia que ela estaria lá. Sentada no sofá do living, muito direita, os braços largados ao longo do corpo, as mãos apoiadas no assento ao lado das pernas descruzadas e inquietas.
            Quase machucava a maciez esbranquiçada da pele em contraste com o veludo adamascado da roupa, as pernas finas enfiadas em meias brancas e sapatinhos envernizados de boneca, os cabelos negros presos numa tiara de cor igual ao vestido. O ar de bicho enxotado, um pequeno ser repleto de medos absurdos e coragens bobas.
            — Deixa eu te ajudar, acho que... bom, esquece.
            Nem sabia o que estava dizendo, apenas reagia a torrentes de afetos com o que conseguia reunir de doçura gratuita. Ela não respondia, apenas ficava ali, balançando o tronco e as pernas. Às vezes atirava-se de cabeça pra trás, como fazem os bebês.
            Aquilo me desconcertou, não conseguia impedir seus movimentos nem argumentar com a garota. Divaguei. Fixava a tinta branca da parede, descascada por alguma infiltração de umidade, que parecia a ponto de se romper. “A natureza vai entrar na sala”, pensei.
            — Olha, me espera aqui, não sai. Vou buscar minha irmã ali na cozinha e a gente prepara uma coisa gostosa pra você.
            Sim, essa era uma boa idéia: pedir ajuda a alguém, alguém que descobrisse alguma saída, ou, que pelo menos tivesse um pouco mais de sangue-frio diante daquela situação. Normalmente não deposito tamanha esperança numa pessoa da família, mas sempre seriam duas cabeças a pensar em vez de uma.
            Duas cadeiras de plástico, frente a frente, separadas por uma mesa com tampo de fórmica, em cima do fogão, igualmente desoladas, duas chaleiras. Afora estes objetos, tudo estava revirado na cozinha: as gavetas arrancadas, os talheres espalhados pelo chão, as travessas e caçarolas em desvario, como se cada coisa inanimada houvesse despertado do seu sono e voltado à vida.
            Minha irmã ao lado da geladeira, com a porta escancarada, devorava uma taça de morangos ― ela sabe muito bem que esses morangos são meus, não me importo que ela se sirva de qualquer outra guloseima. Menos essa.
            Para minha surpresa, já sabia.
            ― Sim, eu vi. Por que tanta surpresa? Ela esteve lá o tempo todo, sempre vai estar. Não podemos fazer nada quanto a... o que está feito, está feito.

            

2 comentários:

Débora Beriteli disse...

Querendo saber mais sobre as irmãs e a menina sentada....

Anônimo disse...

Passo aqui e fico imaginando como funciona o fantástico realismo do escritor, construindo histórias nos trens, nas calçadas, nos bosques, nas escadas, divagando o tudo e o nada, o significado das cores, as sombras coloridas escondidas no negro de todas as pessoas.... Essas histórias todas carregadas de um psicodelismo obscuro e viciante. A vida suporta tudo quando se devolve em arte nossa loucura escondida.