Com ar de
pouco convencida a moça se afastou lentamente carregando o vestido dobrado para
o interior da loja, ficou no ar o risinho insolente de quando a viu entrando
cheia de sacolas, o sorriso do gato invisível, lembrou do entusiasmo que essa
história provocou em Giovanna na época, a filha é uma criança encantadora e
problemática, questionadora, como ela mesma foi antes de se tornar a pessoa
viciada em coisas estranhas de hoje, depois de assistir e ouvir todas as
versões de Alice milhões de vezes, a menina, do alto de incompletos quatro anos
de idade, lhe disse que não queria ser como ela quando crescesse, ‘Por que, Jojô?’,
‘Porque você não consegue mais voltar pra lá’, e no entanto tudo que ela faz é
voltar, voltar e trocar roupas que acabou de comprar, roupas e acessórios que
nunca vai usar: na verdade coleciona os celofanes e etiquetas das suas lojas
preferidas, nas trocas, as vendedoras invariavelmente embrulham e etiquetam o
produto de novo, ela desenvolveu uma técnica apurada pra descolar os adesivos,
realoca-os em pastas junto aos recortes dos celofanes com marca d’água, os
álbuns perfeitamente organizados atulhando seu closet pra desespero do marido,
Sílvia Regina sabe que as suas relações com as vendedoras de artigos de luxo
seguem um padrão peculiar, uma dinâmica predeterminada: paixão, ascensão,
declínio e rompimento abrupto, num período que varia de semanas a uns pares de
meses, a analista lhe disse que o envolvimento com essas moças representa a busca
daquilo que sente perdido pra sempre: juventude e pressa, e, realmente, ela não
tem pressa pra mais nada, desapareceu a lebre maluca e atrasada da sua vida, sobrou
apenas o ritmo irreal do chá das cinco na Montanha Mágica, aliás, conhece Davos
como a palma da mão, não que haja muito a conhecer ali, nem em Aspen, Ibiza,
Monte Carlo, Dubai, Chamonix, Cap Ferrat, St. Bartz, San Marino, Montblanc, cada
círculo exclusivo que consegue galgar, em cada festa, nenhum lugar ou pessoa
importante que lhe são apresentados conseguem mais causar a mínima comoção.
O celular
toca.
“Oi, querida,
viu o meu recado?”
“Ai, Sílvia,
li sim, e é sobre isso que preciso te falar... ai, meu santo, tô bem surtada. A
Isabella também recebeu um pacote hoje de manhã, tem uma equipe de segurança
aqui em casa, tá uma loucura!”
“Acalma,
respira, você não acha que estamos um pouco over? Deve ser só uma brincadeira
de meninas que estão com saudade, uma enviou pra outra e...”
“Sílvia
Regina, acorda pra vida, sai da negação. Então por que as duas enganaram as
babás e foram pegar as encomendas sozinhas na portaria? E por que depois não
havia pacote, embrulho, nem nada com elas? Meninas de oito anos não recebem
encomendas DHL!”
“Ok, tudo bem,
é estranho, mas a gente deu uma busca nas coisas todas da Jojô, na casa toda,
nos jardins do condomínio, e não achamos nada.”
“Tudo bem, pra
você?! Pois deixa eu te contar uma novidade: os detetives descobriram que havia
mesmo uma encomenda internacional pra Isa, de um tal Aylan Kurdi, que mora num
país sei lá o quê, tá bom?”
“Agora você me
assustou, o esquisito é que as meninas só ficam repetindo que era só uma
mensagem. Vou ter que avisar o pai...”
“Mas como
assim, teu marido ainda não está sabendo? Sil, não dá pra ficar de barata-voa,
meu bem. Não sei se é um pedófilo, mafioso ou terrorista, mas coisa boa não
deve ser.”
“Sabe como o
meu marido é ocupado, né? Ele detesta ser interrompido em reunião.”
“Você vem
dizer isso pra mim? O Caio Henrique vive grudado no prefeito mas teve que
participar imediatamente, não tem mole pra ninguém nestas horas.”
Desligaram,
ela pegou o embrulho das mãos da moça da loja e saiu sem se despedir,
experimentava uma espécie de enlevo que já desacostumara, descia escadas e
atravessava galerias em êxtase, uma coisa importante e urgente pra resolver, o
marido teria de lhe conceder algum pedaço da sua escassa paciência com as
miudezas das suas preocupações, afinal, aquela era uma situação de máxima
importância, exatamente o que já não havia mais na sua vida: o perigo de algo
real acontecer, algo novo e imprevisto, sozinha no elevador do shopping center,
mirava-se nos reflexos em abismo das paredes espelhadas enfileirando uma cauda
longa de Sílvias carregando sacolas e chorando, imagens encolhendo ao infinito,
lá onde uma Sílvia minúscula já quase não sente o peso inexplicável do mundo.
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