domingo, 12 de junho de 2016

o mensageiro (4)




Com ar de pouco convencida a moça se afastou lentamente carregando o vestido dobrado para o interior da loja, ficou no ar o risinho insolente de quando a viu entrando cheia de sacolas, o sorriso do gato invisível, lembrou do entusiasmo que essa história provocou em Giovanna na época, a filha é uma criança encantadora e problemática, questionadora, como ela mesma foi antes de se tornar a pessoa viciada em coisas estranhas de hoje, depois de assistir e ouvir todas as versões de Alice milhões de vezes, a menina, do alto de incompletos quatro anos de idade, lhe disse que não queria ser como ela quando crescesse, ‘Por que, Jojô?’, ‘Porque você não consegue mais voltar pra lá’, e no entanto tudo que ela faz é voltar, voltar e trocar roupas que acabou de comprar, roupas e acessórios que nunca vai usar: na verdade coleciona os celofanes e etiquetas das suas lojas preferidas, nas trocas, as vendedoras invariavelmente embrulham e etiquetam o produto de novo, ela desenvolveu uma técnica apurada pra descolar os adesivos, realoca-os em pastas junto aos recortes dos celofanes com marca d’água, os álbuns perfeitamente organizados atulhando seu closet pra desespero do marido, Sílvia Regina sabe que as suas relações com as vendedoras de artigos de luxo seguem um padrão peculiar, uma dinâmica predeterminada: paixão, ascensão, declínio e rompimento abrupto, num período que varia de semanas a uns pares de meses, a analista lhe disse que o envolvimento com essas moças representa a busca daquilo que sente perdido pra sempre: juventude e pressa, e, realmente, ela não tem pressa pra mais nada, desapareceu a lebre maluca e atrasada da sua vida, sobrou apenas o ritmo irreal do chá das cinco na Montanha Mágica, aliás, conhece Davos como a palma da mão, não que haja muito a conhecer ali, nem em Aspen, Ibiza, Monte Carlo, Dubai, Chamonix, Cap Ferrat, St. Bartz, San Marino, Montblanc, cada círculo exclusivo que consegue galgar, em cada festa, nenhum lugar ou pessoa importante que lhe são apresentados conseguem mais causar a mínima comoção.
O celular toca.
“Oi, querida, viu o meu recado?”
“Ai, Sílvia, li sim, e é sobre isso que preciso te falar... ai, meu santo, tô bem surtada. A Isabella também recebeu um pacote hoje de manhã, tem uma equipe de segurança aqui em casa, tá uma loucura!”
“Acalma, respira, você não acha que estamos um pouco over? Deve ser só uma brincadeira de meninas que estão com saudade, uma enviou pra outra e...”
“Sílvia Regina, acorda pra vida, sai da negação. Então por que as duas enganaram as babás e foram pegar as encomendas sozinhas na portaria? E por que depois não havia pacote, embrulho, nem nada com elas? Meninas de oito anos não recebem encomendas DHL!”
“Ok, tudo bem, é estranho, mas a gente deu uma busca nas coisas todas da Jojô, na casa toda, nos jardins do condomínio, e não achamos nada.”
“Tudo bem, pra você?! Pois deixa eu te contar uma novidade: os detetives descobriram que havia mesmo uma encomenda internacional pra Isa, de um tal Aylan Kurdi, que mora num país sei lá o quê, tá bom?”
“Agora você me assustou, o esquisito é que as meninas só ficam repetindo que era só uma mensagem. Vou ter que avisar o pai...”
“Mas como assim, teu marido ainda não está sabendo? Sil, não dá pra ficar de barata-voa, meu bem. Não sei se é um pedófilo, mafioso ou terrorista, mas coisa boa não deve ser.”
“Sabe como o meu marido é ocupado, né? Ele detesta ser interrompido em reunião.”
“Você vem dizer isso pra mim? O Caio Henrique vive grudado no prefeito mas teve que participar imediatamente, não tem mole pra ninguém nestas horas.”
Desligaram, ela pegou o embrulho das mãos da moça da loja e saiu sem se despedir, experimentava uma espécie de enlevo que já desacostumara, descia escadas e atravessava galerias em êxtase, uma coisa importante e urgente pra resolver, o marido teria de lhe conceder algum pedaço da sua escassa paciência com as miudezas das suas preocupações, afinal, aquela era uma situação de máxima importância, exatamente o que já não havia mais na sua vida: o perigo de algo real acontecer, algo novo e imprevisto, sozinha no elevador do shopping center, mirava-se nos reflexos em abismo das paredes espelhadas enfileirando uma cauda longa de Sílvias carregando sacolas e chorando, imagens encolhendo ao infinito, lá onde uma Sílvia minúscula já quase não sente o peso inexplicável do mundo.



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