“Como
você sabe que o inferno existe?”, sentada na beira da cama, Giovanna não estava
disposta a aceitar afirmações peremptórias, muito menos verdades subentendidas.
“Simples,
eu estive nele”.
“Então
me conta como é lá, tem casas, escritórios, árvores, monstros?”
“Nada
disso. É um barco.”
“Como
assim, Allan, um barco?”
“Apenas
um barco, e o mar: imenso, vazio, perigoso”, o menino remexia as mãos hesitando
prosseguir no rumo da conversa.
“Não
estou entendendo, isso não se parece com o que me contaram...”
“Aquilo
não se parece com nada. Um esqueleto velho de madeira podre, todo enferrujado,
conduzido por piratas que sabem que a maioria dos passageiros vai morrer na
travessia.”
“Um
barco de piratas? Não sabia que piratas ainda existiam.”
“Existem
sim, são cruéis e cobram caro dos que precisam fugir da guerra. Minha mãe
entregou a única jóia de ouro que ganhou no casamento pra gente ir da ilha de
Kos ao porto de Bodrum na Turquia. Era tudo que nos restava, mas era pouco para
aqueles homens, não tínhamos dinheiro pra dar a eles, por isso meus pais viajaram
no porão e morreram sufocados, meus irmãos mais velhos iam no compartimento do meio,
junto com o óleo que queimou a pele deles pra sempre, nós crianças viajávamos
no convés, um lugar perigoso onde o vento e as ondas a toda hora derrubavam
alguém pra fora do barco. Não havia salva-vidas nem bóias pra salvar os que
caíam, e também ninguém se importava.”
“Que
horror! Nem dá pra acreditar que tem tanta malvadeza no mundo!”, os olhos de
Giovanna eram duas órbitas congeladas na moldura dos cílios longos.
“Mas
foi assim. O navio todo rangia balançando, ameaçando se desfazer a cada onda,
os gritos, as rezas, as rajadas de espuma salgada, tudo se tingia de uma cor
escura mesmo embaixo do sol, os sentimentos rodopiavam dentro de mim feito
ventos loucos, porque as coisas aconteciam sem nenhum sentido ou controle como
se estivesse dentro de um sonho ruim, pra esquecer a fome repassava na cabeça as
lembranças boas da minha vida e as cenas de um filme antigo, um senhor perdeu o
juízo e se atirou no mar durante a tempestade, meu desespero era um choro
silencioso que ninguém escutava, nem mesmo eu podia escutar.”
“Allan...
você perdeu seus pais?!”, grossas lágrimas quentes desciam pelo rosto de
heroína de mangá da garota.
“Giovanna,
desculpa, não queria fazer você chorar. Acontece que esta é a minha história,
não tenho onde me esconder dela.”
“Tô
bem, não se preocupe. Agora entendo porque você tá sempre triste e com medo das
pessoas. Prefiro quando me dizem a verdade.”
“Sei
que a minha vida machuca, mas não queria te machucar. É que... só você tem a
coragem de me ouvir, e eu tenho essa necessidade de contar, de dizer pra todos
que tudo isso foi real.”
“Minha
mãe falou que você não existe, que é invenção da minha cabeça. Ela falou pra eu
pensar que sou uma linda princesa que mora num lindo castelo, e assim vou
conseguir dormir na hora que tem de dormir. Disse bem assim: ‘O Allan é só um
amigo imaginário, daqui a pouco ele some’.”
“Às
vezes também penso que não sou de verdade. Não existe mais nada do que eu vivi,
só esta prisão onde me jogaram. Perdi o lugar no mundo, ninguém quer receber o
meu povo”.
“Deu
na televisão o nome da cidade que você morava.”
“Ah,
sim, é o noticiário das catástrofes nos lugares que só existem no mapa, a dor
das pessoas imaginárias.”
“Você
sente saudade da sua casa?”
“Minha
casa?... Seria aquela cidade onde as bombas caíam de surpresa enquanto
dormíamos, ou então quando estávamos reunidos nas festas? Pedaços: de lojas e
ruas, cachorros, carros abandonados, brinquedos deixados pra trás. Ruínas e pó.”
“Tem
alguma coisa que eu posso te ajudar, Allan?”
“Tem
sim, me dá seu endereço, vou te enviar uma encomenda. Provar que existo de
verdade.”
“E
o que é que você vai me mandar?”
“Uma mensagem.”
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