Sílvia
Regina ajeitou um vinco imaginário na saia, a boulangerie vazia àquela hora, na
única mesa ocupada a moça de óculos e tatuagens coloridas batuca no seu
notebook, mira-se no reflexo da cristaleira com trumeaus dourados repleta de doces
e pães de grãos selecionados, sim, ainda é uma pretty young lady com doutorado
na London School of Economics, mas o atraso da amiga deixa escandalosamente
claro: não tem com que preencher a tarde inteira, o dia inteiro, nem a vida
inteira, porque se casou com um homem maravilhoso que a instalou numa gaiola
tão cara e dourada quanto a cristaleira retrô da padaria gourmet onde espera a
grande amizade da sua infância chegar, o espelho inesperado dos seus óculos
escuros sobre a mesa lhe devolve a alegria de constatar uma vez mais os
pequenos milagres da maquiagem Lancôme, embora nesta felicidade também se
misture um medo supersticioso: a palavra esconde nas suas dobras cacofônicas tudo
aquilo que deseja expelir da sua vida, melancô, melancô, melancô, e por isso
tem preferido usar as marcas Shiseido e Vichy ― fato incontestável: 36 anos nas
costas e ela não sabe o que fazer com tantas horas sem nada pra fazer.
Checa
mensagens no celular, a amiga avisa que ainda demora ‘uns vinte minutinhos’,
pensa como seria bom morar no Rio de Janeiro como ela, perto do mar, longe do
sufoco daqui, as pessoas no Rio são mais leves, mais debonair, se levam (ou fingem
se levar) bem menos a sério, pensa em como a sua vida hoje se resume a
chatices: achar a peça do termostato do boiler, demitir o jardineiro da casa de
Itu, reunião com o veterinário do haras, com o advogado, com a fonoaudióloga da
filha, o cotidiano de ‘mãetorista’ de Giovanna: escola, nutricionista, terapia,
balé, endócrino, ortodontista... às vezes se pergunta se ama de verdade a
filha, o marido, ou a si mesma, por que existem tantas faces em mim, tantos
lados na verdade?, mas logo entra outra linha de pensamentos, as mensagens vão
pipocando na tela: ‘Miga, qta sdd!! Bora skiar prox férias?? #PartiuVail’, não
sabe como explicar a ela que nunca mais poderão esquiar, viajar, nem sequer
jantar juntas com as respectivas famílias porque o marido da amiga aproveita
qualquer descuido pra se atirar sobre ela, Sílvia não pode, simplesmente não
consegue contar, prefere se afastar, fugir, deixar a distância de 400 km esfriar a amizade,
esta é a sua vida: feita de grandes atropelos e pequenas fugas.
“Sil,
desculpa a demora, peguei um congestionamento monstro. Pelo menos de Uber sai
mais barato. Imagina, fiquei um tempão parada por causa de uma dessas escolas
invadidas, tinha polícia, gás lacrimogênio, um horror!”
“Vá
entender essa gente, precisam tanto de escola e ficam fazendo greve,
ocupação... Bom te ver, linda, quanto tempo?, um ano sem nos vermos.”
“Olha,
não aceito mais desculpas: no Finados vocês vão ficar com a gente lá na Barra, morar
no Rio é dez, mas ficar longe da melhor amiga ninguém merece. A Isabella não
pára de perguntar da Jojô, sabia?”
“É
mesmo, as filhas continuaram a nossa amizade. Umas fofas. Como está a Isa?,
sempre foi tão inteligente...”, Sílvia precisava urgentemente mudar o assunto.
“Hmm,
inteligente até demais, tá me dando um trabalho do cão! Você acredita que agora
ela vive me perguntando coisas do tipo: ‘Mãe, por que existem pobres?’, ou pior
ainda: ela descobriu que o condomínio que o pai construiu, o Ilha Pura,
expulsou umas duas três famílias, ai, virou um inferno...”
“Acho
que é da idade, vem das amigas da escola uma parte. A Jojô deu de não comer
mais carne, só aceita peixe. Dá pra acreditar, você que a conhece?”
“Sério?!
Que coincidência, a Isa também passou a recusar carne, e você lembra como ela
era alucinada por lingüiça, né? Hoje faz cara de nojo. E quer saber da maior?
Agora ela tem um amiguinho imaginário, o tal de Aylan. No começo até achei que
era algum tarado da internet, dei uma vasculhada no Face e no celular dela, mas
não vinha daí.”
“Não
é possível, a Jojô também me falou desse amigo, o Allan, mas nem dei muita bola
porque achei que era um menino da escola... Mas agora que você falou, ela
também começou a perguntar coisas estranhas sobre refugiados, crianças morrendo
de fome e frio...”
“Sílvia,
você acha possível que as nossas filhas estejam se falando e inventando essas
histórias?”
“Pode
ser, amiga, mas também fucei nas coisas dela e não achei nada nos históricos que
indique...”
“O
que a gente está fazendo de errado, Sil? Essas meninas têm do bom e do melhor,
criadas no leite de pêra... e depois, só têm oito anos!”
“Bom,
eu corri com a Jojô pra terapia, vai ver é algum trauma.”
“Bom,
não dá pra ter trauma de infância na
infância! Além do que, toda a infância é traumática de algum jeito.”
“Lembro
de você me falando que a Isa tomava Concerta, será o caso...?”
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