domingo, 24 de julho de 2016

A Corrente (2)




2. Ramsden

― Como é que sabe que eu ia fazer merda? E depois... quem, melhor, o que é você? Não me venha com treta de espírito, que não acredito nessa resenha.
― Prazer, Ramsden, eu sou a Norma, uma pessoa como as outras, igualzinha a você, meu bem: cheia de problemas. Nunca tive visões ou saí do próprio corpo, não converso com mortos, não leio cartas, não tenho premonições, nem entidades baixando em mim. A coisa mais esquisita que já me aconteceu acabei de te contar.
― Então por que tô vendo e ouvindo você como se estivesse aqui do meu lado? Como sabe meu nome? Onde que cê tá na real?
― Na real, estou na cozinha de casa preparando o almoço de amanhã das minhas filhas. Quando elas voltarem da escola, a vizinha que olha elas pra mim só vai ter o trabalho de esquentar e servir, e eu só vou chegar à noite porque trabalho o dia todo feito uma condenada.
― Mas, e como...?
― O seu nome eu sei porque ouvi sua tia chamando você outro dia. Agora, se me perguntar como ou por que isso tá acontecendo, não vou saber responder.
― Cê também recebeu uma corrente esquisita?
― Sim, e já que a coisa tá acontecendo direitinho como tava lá escrito, vou cumprir a minha parte e torcer pra esse negócio estranho terminar logo e bem.
― Então é você a minha conselheira... uma pessoa que me aparece feito assombração. Tem alguma coisa da hora pra dizer, ou vai me passar o sermão do “compreenda seus pais, eles têm outra cabeça”?
― Ramsden, não conheço tua história, tuas razões pra chegar ao ponto que chegou, o que eu percebi é que tu não dorme a noite toda e fica olhando essa janela com cara de quem tá a ponto de fazer besteira. Você é jovem, tem o quê?, dezessete, dezoito? Não vou te dar conselho que isso não adianta pra adolescente, em vez disso, vou lhe contar outra historinha, uma mais antiga, de quando eu tinha metade da sua idade. Meus pais bebiam muito e viviam brigando, eram arranca-rabos medonhos, a ponto da vizinhança chamar a policia, pra você ter uma idéia. Minha casa era uma gritaria só, eu e meus irmãos vivíamos apavorados com aquele pega-pra-capar constante. Um dia, a briga ficou ainda mais feia do que o costume, o pai pegou uma cadeira e começou a avançar, minha mãe não se encolheu, catou um facão e partiu pra cima. Eu assistia a tudo sentada à mesa (era a mais velha, os caçulas já tinham ido dormir), tava ali quieta, brincando com bolinhas de miolo de pão, de repente, sem que eu tivesse pensado muito, peguei um garfo e enterrei bem fundo nas costas da minha mão esquerda. Lembro que o sangue jorrava em borbotões grossos do lado dos dentes metálicos do garfo enfiados na carne...
― Eu hein, outra história terrível! Em que é que isso pode me ajudar? Tá sabendo que meus pais me botaram no olho da rua?
― Sei. Escutei você falando ao telefone com sua mãe, saquei um pouco do panorama geral: seus pais estão na errada, muito mesmo. Veja meu caso, naquele dia, eu consegui fazer meus pais pararem, só que o preço foi me machucar muito. E não adiantou: depois eles voltaram a fazer tudo igual de novo. Ramsden, não tem como dar uma lição em alguém se, para isso, você tem que se arrebentar. Ninguém consegue parar a estupidez sendo mais estúpido ainda.

Nasci numa família de Bíblias, quer dizer, sempre fomos mais ou menos religiosos, mas tudo mudou de figura quando a minha avó ficou doente. A mãe virou xiita total, passou a freqüentar os cultos quase todos os dias, o pastor Malafaia se tornou a última palavra pra tudo na nossa casa, aliás, ele se tornou a encarnação da Palavra em nossas vidas. Aos poucos, a gente se tornou um rebanho de radicais: o segundo a aderir fervorosamente foi o pai, depois a minha irmã, e por último lá fui eu também cantar no coro da congregação. Terninho engomado e cabelo curto pros homens, saia comprida e cabelo amarrado em trança pras mulheres, no exército do Senhor uma coisa é uma coisa, outra coisa é outra coisa.
Na boa, chamar a Bíblia de livro santo ou guia moral é a maior palhaçada, só pode ser piada. Os caras estão de brinques: já calcularam que no livro dos livros 2,5 milhões de mortes são narradas. Repúdio claro a essa chacina monstra? Nada disso. O que pega mesmo, o que enfurece Javé, são os varões de Sodoma, os adúlteros, as prostitutas, os fornicadores e punheteiros em geral, além dos descuidados que deixam entrar cachorros no Templo. Zé-povinho gosta mesmo é de ser enganado, digam o que quiserem os profetas.
Claro que o Altíssimo não mudou uma vírgula no estado de esclerose da avó, mas a mãe não deixou de levar a pobrezinha a tudo que era vigília, cultos de exorcismo e sessões de cura que os ministros de Deus lhe recomendaram. Uma boa grana esses abutres com ternos caros e carrões importados arrancaram dos otários dos meus pais. O Espírito Santo realmente deve se manifestar em alguns indivíduos escolhidos, porque o que esses pastores são ensaboados, não é brincadeira. Neguinho te esfola vivo e tu ainda agradece por ajudar o malaco a encher o rabo de grana.
Na verdade os meus velhos são enganados dentro e fora de casa: a minha irmã fuma um do bom, vai a baladas e fornica antes do matrimônio, mas não pega nada pro lado dela. Sabe por quê? Porque ela sabe esconder, tem as manhas de muquiar a real, falar e mostrar só o que eles querem. Meu erro foi acreditar que alguém ficaria do meu lado quando comecei a ser zoado na escola, a diretora chamou meus pais pra formalizar a queixa contra o professor que ficava me usando como exemplo nas aulas de história ― e, diga-se de passagem, nunca houve escassez de viado em nenhuma época da humanidade...
Em vez de perguntarem pra mm se era verdade que o professor fazia bullying comigo, meus pais, na frente da diretora, quiseram saber se era verdade que eu sou uma “abominação ao Senhor”. E foi assim que meus pais ficaram sabendo o que eu já sabia há mille ano: gosto de rapazes, eles são tão irresistíveis pra mim quanto os anjos que visitaram Lot eram pros sodomitas. Sinto atração pelos meus semelhantes em gênero, como Noemi por Ruth, e como Davi por Jônatas, que mal pode haver nisso? Pro meu pai e minha mãe, todo o mal. Fui expulso de casa, e ainda bem que a minha tia me recebeu na casa dela, mas todas as noites agora penso em me jogar por essa janela e acabar de uma vez com todo esse sofrimento.


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