domingo, 31 de julho de 2016

A Corrente (3)




3. Admildo Queirós Jr
           
            Pilhas de pratos sujos e copos com resto de cerveja. Bancos ao redor de uma mesa velha. Lata de lixo atochada de embalagens de pizza, long necks e coadores de café usados. Cinzeiros improvisados ― latas de refri rasgadas ao meio ―, lotados de bitucas de cigarro. Da janela vejo um varal cheio de roupas, fico na dúvida se é real esse cheiro de grama molhada que entra pela janela. A angústia circula entre os policiais no barraco fedorento, alguém vai ter que limpar essa bagunça uma hora.
Todo mundo já entendeu que estamos em guerra, o que as pessoas não querem entender é que numa guerra há baixas dos dois lados. Necessariamente. Se não, seria um passeio, fácil como roubar aposentado numa saidinha de banco: mandava lá os drones, pá-pá-pá, liquidava os vagabundos todos, e o serviço tava feito. Passava a régua, limpo e seguro. Acontece que nem no Iraque foi assim, e aqui na Cidade Mara a lógica é outra: se nós temos escopeta, vagabundagem tem metranca, se nós arranjamos metralhadora, malandro tá com bazuca. No dia que descolarmos um drone, eles na certa vão vir de bomba atômica. Segurança pública é isso: a bandidagem tem grana, estrutura e pessoal motivado, nós... bem, a gente vai fazendo acordos.
Desculpe falar assim, não costumo comentar essas coisas nem em grupo fechado só dos meus camaradas da polícia, mas é que hoje a minha gastrite acordou a toda. Além do mais, esta nossa conversa não é propriamente... uma conversa! Me pergunto se não estou doidão de pedra, eu aqui, de papo com um camarada que só existe na minha cabeça. Enfim, Ramsden você disse?, eu lhe falei de guerra, mas a imagem que as pessoas têm de uma guerra é muito Hollywood e novela da Globo: vilões e mocinhos, dois lados opostos, o bem de um lado, o mal do outro. Só que não. Guerra é, e sempre foi, em todas as épocas e lugares, um grande negócio.
Os caras negociam sempre que há um Deus-nos-acuda nacional. No Tropa de Elite era a visita do papa, mas pode ser qualquer evento que ponha os olhos do mundo em cima de nós. Foi assim em 2006, quando “aquela facção que age dentro dos presídios” parou a cidade de São Paulo: os caras foram lá negociar com os cabeças em Presidente Bernardes. Agora é a Olimpíada. Ninguém quer merda acontecendo com milhões de câmeras e jornalistas circulando por aí, aconteça o que acontecer, não pode dar ruim lá na gringa. Nessas horas as diretorias sentam pra trocar figurinhas.
Sabe onde eu estou neste momento? Bom, isso aqui é uma campana pra alvejar traficante, a facção do Vidigal cedeu este esconderijo, e daqui a gente vai apagando os malucos da Rocinha que aparecem portando armas. Não tem moleza, são tiros de 400, 500 metros, tem que ficar horas na posição, até que aparece o mala, e Tuf!, uma azeitona de 7.62 derruba o mané sem ele nem saber de onde veio. E por quê? Porque neguinho lá não tá respeitando o cessar-fogo, o cessar-arrastão e roubo a gringo, não sentaram com o governo pro arrego, daí, meu irmão, é bala. Ninguém se importa com morte de bandido neste purgatório da beleza e do caos. Cai tudo na conta das tretas entre eles. Claro, um monte de tira tá morrendo nas rondas por causa disso, como lhe disse antes, a guerra tá rolando solta, mas nada pode estragar o show.
Sou atirador de elite, um sniper monstrão, 4 horas de treinamento diário por cinco anos pra acertar um grão de feijão a 100 metros de distância. Não gosto do que estou fazendo, mas ordens são ordens. É pra descer vagabundo? Meto prego mesmo, e depois Deus que me perdoe. Melhor ser a mãe dele chorando no final do dia do que a minha. O esgotamento físico é animal, uma porra de um trabalho solitário, só compartilhado com aquele grupo que você está vendo todos os dias: as mesmas caras, as mesmas conversas. Você não pode sair na rua e conversar com ninguém. Não tem domingo, não tem feriado. Às vezes bate o pânico: você imagina que a base vai ser estourada, os bandidos vão vir e levar todo mundo pra matar depois, ou então, vão incendiar o barraco, jogar uma bomba. De todo modo, não estamos sós. Há uma equipe de cobertura no final da viela.
Não sou um sujeito cego pras injustiças sociais. A favela da Rocinha, com IDH de Botsuana, cortada pelo túnel Zuzu Angel, está encravada entre os bairros da Gávea e de São Conrado, os IPTUs mais altos da cidade, ambos com IDH da Noruega. Óbvio que o camarada que nasce aqui vai crescer revoltado, não tem como: insegurança, escola de merda, transporte de merda, saúde de merda, vida curta. Acontece que a minha profissão não é consertar o país, apenas mantê-lo dentro do absurdo normal do patropi. Numa hora como esta, o cu de todo mundo tá na reta, na guerra, irmão, todos os cus estão cosidos, ligados uns aos outros. Olha pelo meu binóculo, lá está o vagabundo, descendo a escadaria carregado de sacolés. Primeiro, vou derrubar ele, depois estouro os pacotes de cocaína no segundo tiro.
― Admildo, aquele é só um menino carregando sacolas com pipoca. Daqui ele te parece um bandido, mas é só a roupa, o lugar, a cor da pele, que estão errados. As aparências estão contra ele.
― Você pensa em se matar?
― Todos os dias.
― Eu também, Ramsden, muitas vezes.
― Você não consegue dormir, tem uma gastrite que não sara. Se atirar, vai acertar em você mesmo.


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