quarta-feira, 28 de setembro de 2016

Afterlights (2)




            Evidentemente, não há amor-próprio que resista a uma traulitada dessas, o sujeito malhou implacavelmente o resultado de 3 anos de esforço insano em exatos e demolidores 1051 caracteres. Meu ego levou uma tunda pior que Judas no sábado de Aleluia, e foi dormir na praça. As devastadoras palavras finais em caixa alta reverberaram por meses na minha mente em viés de baixa: PASSE ADIANTE, PASSE ADIANTE, PASSE ADIANTE. Pareciam ser, como de fato eram, um decreto de ostracismo para a minha já pouco promissora carreira literária. E o pior de tudo é que, no fundo, sentia que o cara estava certo. Ponderei comigo mesmo que talvez me faltasse a experiência direta, como se ainda não tivesse provado o verdadeiro almoço nu, não houvesse chegado perto do coração selvagem da vida como ela é. Ora, se Joseph Conrad, Euclydes da Cunha, Le Clézio, Jack Kerouac, e até Guimarães Rosa, tinham posto a mão na massa e o pé na estrada para comporem suas obras-primas, talvez fosse o caso de cometer esse nefando crime contra todos os meus princípios: trabalhar.
            O figurino habitual do escritor frustrado recomendava um longo mergulho na depressão, nas drogas e na orgia, mas faltavam-me a vocação e a fortitude de caráter para suportar as contas atrasadas, além do mais, encarar a noite escura da alma de barriga vazia provoca gastrite e dá uma insônia do cacete. O trampo do aplicativo nada mais era do que uma extensão da inércia habitual, ficava em casa fazendo porra nenhuma durante dias até receber um endereço e um nome pelo celular. Eles chamavam isso de job: tem um job lá pra você no lugar tal, com fulano(a) de tal. A hora podia ser qualquer, do dia ou da noite, feriado ou dia santo. O primeiro rendez vous foi num galpão abandonado cheirando a bosta e mijo repleto de entulho, a todo momento imaginava que uma horda de crackudos ia me cercar e devorar o meu cérebro. Lancei o pó de ninja e vazei dali cagado de medo.
            Na segunda chamada melhorei dramaticamente de nível na escala social: bairro classe média alta, varanda gourmet, apartamentos de um por andar, humilhação básica na portaria e mordomo atendendo na porta do elevador pedindo para eu esperar no living enquanto madame se aprontava para me receber. Finalmente sentia que as coisas iam começar pra valer, já antecipava a esbórnia que faria com a grana do primeiro pagamento. Dona Irany Maracajá proporcionou-me novo chá de cadeira básico até despontar na sala rescendendo a perfume doce e vestida como se tivesse acabado de sair de Downtown Abbey, tinha os cabelos pintados num tom azul-violáceo, e devia andar lá pelos seus 90 e tra-la-lá.
            ― Venha por aqui, estaremos mais cômodos no escritório do meu falecido esposo. Você não se parece muito com a foto do perfil, aliás, nem parece que se dedica a este tipo de ocupação tão... singular.
― Verdade, essa foto que usei é de tempos melhores da minha vida. A senhora talvez não consiga avaliar o quanto a penúria econômica maltrata o cidadão, digamos assim, desfavorecido.
― Você é que não sabe nada da minha vida pra falar desse jeito comigo. O problema é que, diferentemente da estupidez, o bom senso é muito mal distribuído na população em geral. Seja sincero, é a primeira vez que...? A sua patente impertinência denota uma óbvia falta de experiência.
― Sinceramente, peço-lhe desculpas. Não queria ser grosseiro, acontece que, apesar de ser escritor, não sou muito bom com as palavras em situações de interação social. E, sim, é a minha primeira vez.
― A juventude é mesmo um transtorno, felizmente, tem cura. Percebo que se interessa pelos livros do meu marido, a maioria são de direito, mas também deve haver por aí algumas primeiras edições autografadas a merecer melhor destino. Apesar das estantes envidraçadas, não imagina a pó que essa tranqueira junta.
― Tranqueira, pó... a senhora não faz idéia do quanto eu gosto de ouvir esse tipo de comentários sobre os livros. Bom, mas nada disso diz respeito ao nosso objetivo aqui, podemos começar?
― Antes, quero lhe pedir um pequeno favor...
― Esteja à vontade, faça como se estivéssemos na sua casa.
― Fique de pé, por favor.
― Não estou entendendo...
― Você poderia se masturbar? Tranqüilo, não farei nada além de observar. Só peço que vá até o fim.
― Mas por que...?
Ganhei 50 pratas pelo “serviço”, mas não consegui realizar o job da Afterlights. Quase liguei pro meu editor, queria dizer a ele que há buracos ainda mais negros do que os da literatura.



sexta-feira, 23 de setembro de 2016

Afterlights (1)




            Precisavam justamente de alguém com disponibilidade para trabalhar em “horários flexíveis”, e foi assim que emprestei a soldo minha absoluta falta do que fazer à empresa Afterlights. Disponibilidade é meu nome, sobrenome desocupado. Talvez na época eu tenha estranhado a contratação mega express ultra rápida (a entrevista com o dono da firma durou uns 15 minutos), mas devo ter-me convenientemente convencido que é assim que a banda toca no universo em desencanto das start ups: dinamismo, alta competitividade e zero conversa mole. Além do mais, os caras me registraram, e, nestes tempos golpistas e bicudos, “resistro” em carteira tá mais difícil de achar do que nota de 100. Abracei com as quatro patas.
            ― Estou vendo aqui no seu currículo que você é escritor, tá ciente da nossa cláusula de confidencialidade? A natureza específica do seu trabalho conosco é absolutamente sigilosa, não vai poder aparecer em futuro algum, nem em prosa nem em verso.
― Oh, não se preocupe com isso, talvez a melhor maneira de guardar um segredo seja dentro de um livro meu. Pro senhor fazer uma idéia, a minha mãe não foi no lançamento da coletânea de contos que publiquei no ano passado.
― Não me chame de senhor, sou mais novo que você. Espero que, a esta altura, já tenha estudado nossos propósitos, valores e missão no site, e esteja claro como é que o app funciona.
― Bom, li sim, mas admito que ainda restam algumas pequenas dúvidas do tipo: então eu fico cadastrado no aplicativo, foto de corpo inteiro, bio, links pra redes sociais, e, por sua vez, os clientes do portfólio escolhem pelas características, e tal, quer dizer, não vejo muito como eu poderia dar match com os usuários de vocês...
― Hehehe, nossos clientes têm os mais variados gostos, quanto a isto fica sussa, vai ter demanda. Lhe garanto. O salário é como no anúncio, você recebe um fixo mínimo e ganha comissão a partir de 10 clientes por semana. O mais importante é que você se familiarize o mais rápido possível com os equipamentos.
            Tudo conspirava para que me atirasse de cabeça na buena onda, aparentemente as minhas qualificações, ou a falta delas, faziam de mim o candidato ideal ao posto na Afterlights, pelo menos era o que garantia o CEO do boteco. Tinha acabado de reiniciar pela trocentésima vez meu segundo romance inacabado, impublicável e invendável como o primeiro, ou seja, dispunha de tempo, falta de dinheiro e vontade de ficar o mais longe possível da opressora página branca. Infelizmente para mim para o mundo, não era o famigerado bloqueio criativo a me paralisar, mas a autoestima que andava abaixo de cu de cobra: por um desses lapsos que Freud explica com um risinho no canto da boca, meu editor me respondeu um e-mail copiado com a avaliação dos originais pelo conselheiro editorial da casa. O camarada torou meu manuscrito sem dó, apanhei mais que pobre na mão da polícia.

Boa descrição, diálogos apresentáveis. Alguns momentos divertidos, outros delicados. Em resumo, um romance de palavras bem escolhidas. A estória, porém, é um saco. As primeiras 30 páginas se arrastam como uma lesma em slow motion, repletas de exposição, o resto não chega a seus pés. A trama principal, ou o que há dela, é recheada de coincidências convenientes e motivação fraca. O protagonista é homem, branco, heteronormativo, cisgênero e bidimensional, praticamente desprovido de interesse ou conflitos relevantes, tropica ao longo da narrativa embrulhado numa grossa camada de tédio – o que não impede de lhe acontecerem as coisas mais insólitas e de conhecer misteriosas personagens. Tensões não relacionadas que poderiam transformar-se em subtramas nunca chegam lá. Personagens nunca revelam ser algo mais do que parecem, a tantas horas, um providencial terremoto (!) livra o autor de resolver a maioria deles. Nenhum panorama momentâneo da vida interior dessas pessoas ou de sua sociedade. Freqüentes pseudodiscussões filosóficas regadas a erudição alheia truncam a fluidez do texto. É uma coleção sem vida de episódios previsíveis, mal contados e clichês que caminham a passo de bêbado para uma confusão sem sentido. PASSE ADIANTE.


sábado, 10 de setembro de 2016

o intruso (final)


― Desculpe, de qual apartamento o senhor disse que veio mesmo?
― Acho que não disse, esqueci, sou do 143, bloco A.
― Pois é aí que embaça: o senhor não é do 143, bloco A, a bem dizer, o senhor não mora aqui.

Foi a minha vez de levar um susto. Dei um passo para trás como se fugisse da pior das notícias, só que, mesmo depois de terem cessado de vibrar no ar, aquelas palavras entraram em violenta agitação dentro de mim, seres estranhos a meio caminho entre a matéria e a vida, como que me giravam à roda da cabeça, ondulantes, peremptórias, inundando a corrente sanguínea com os instintos básicos de lutar ou fugir. “O senhor não mora mais aqui”, repetia o pensamento, “não mora aqui”, mas a memória disparava o alarme com o tal do “mais”: “não mais aqui”, (claro!, que imbecil, como poderia ter esquecido?, morei neste prédio há muitos anos, meu último endereço antes de deixar a casa dos pais), de forma que a questão óbvia era saber se a minha família ainda residia ali. O porteiro tirou da gaveta uma pasta encadernada com folhas de plástico onde constavam os nomes e os respectivos conjuntos dos moradores do condomínio, e esperou com calma budista que, apresentado ao encadeamento de causas e efeitos sob a luz ofuscante das evidências, acabasse por finalmente aceitar a minha condição de forasteiro. Para cúmulo do desespero, segundo o caderninho que ele me estendera, no apartamento 143, bloco A, moravam pessoas que eu desconhecia por completo.

― Peixoto, você não tá suspeitando de mim, tá?
― Tô sim, mas, por outro lado, se você estivesse assaltando nós, já teria botado um cano na minha cara.
― Bem, não deixa de ser uma forma de confiança...
― Você é branco, bem vestido, fala difícil... por que escolheria o edifício Presidente, que só tem fodido e tiozinho aposentado?
― E quanto ao cara do 14° andar? Ainda precisamos fazer alguma coisa a respeito.
― Ok, mas veja, se eu for acreditar no que tá me dizendo, são 2 os desconhecidos: você, e o tal sujeito...
― Mas eu não estou tentando invadir a casa de ninguém, Peixoto!
― Depende, o senhor disse que faz poucos minutos estava num apartamento que não lhe pertence, e agorinha entrou feito pé de vento nesta guarita falando um monte de coisas sem pé nem cabeça.

Não havia como retrucar a uma lógica tão meridiana e embasada em tantos fatos sólidos. Fiquei sem resposta, esfregava nervosamente o rosto com as mãos como se a solução pudesse ser extraída dali a fórceps. Só me restava apelar para o resto de credibilidade que a aparência conferia aos propósitos descabelados da minha conduta. Quanto mais eu refletia sobre a situação, mais suscitava questões acerca das minhas atitudes: parecia um ator amador, cuja voz diz uma coisa, e cujos gestos e olhar, outra. Era tudo muito confuso. Mas, como os sonhos ou as mentiras, mensagens confusas também são mensagens. E verdades contadas atabalhoadamente podem ser mais reveladoras, e até mais verdadeiras, que outros tipos de verdade.

            ― Vamos fazer o seguinte: o senhor fica aqui no meu lugar um instante, que eu vou dar uma olhada nos elevadores ver se há alguma movimentação estranha. Valeu?
― Só posso lhe agradecer a confiança. Espere, espere, E como faço pra abrir a porta aos moradores que chegarem ou saírem?

Explicou-me o sistema de abertura das portas e garagens e saiu caminhando mansamente pelo hall na direção dos elevadores. Sentia uma certa calma, o primeiro bálsamo de relaxamento daquela noite esquisita, as coisas pareciam haver retomado os trilhos da normalidade. Abri e fechei portões, recebi entregadores de pizza, forneci indicação de ruas a passantes eventuais, e, tirando um ou outro condômino que estranhou minha presença na guarita, tudo corria em paz. O ambiente da portaria era de uma desolação atroz: a luz branca, o espaço mesquinho, a obrigação de imobilidade completa, tudo isso arrematado pelo radinho sintonizado num programa policialesco. Passada uma hora desta rotina, comecei a entrar novamente em pânico: por que o Peixoto não voltava? Estava a ponto de abandonar o meu posto, quando apareceu saindo do prédio um homem alto, envergava um incongruente sobretudo para a noite de verão. Era a encarnação perfeita do típico suspeito de filme noir.

            ― Ei, senhor, por favor, de onde está vindo?
― Perdão?!
― O senhor me desculpe, é que estamos tendo um pequeno problema com um entregador que subiu e...
― Então é sua obrigação resolver o problema, e não importunar os moradores. Aliás, por que está sem o uniforme de trabalho?
― Justamente, o porteiro precisou sair pra verificar e fiquei aqui no lugar dele. O senhor viu alguma movimentação fora do habitual?
― A única coisa fora do habitual aqui é você, faça o favor de me abrir a porta, sim? Outra coisa: procure tratamento, pelo jeito o senhor está bem fora da casinha.

O camarada saiu de maus bofes, pisando duro no pavimento da entrada social. Não havia nada a fazer, retombei numa desesperança opaca e impotente. E se o homem do sobretudo estivesse certo? Eu poderia estar louco, ou talvez sonhando. Abri a gaveta à minha frente sem saber exatamente o que procurava. Um canivete chamou-me a atenção, pensei: se estiver sonhando, só há uma maneira de sair daqui ― morrer no sonho significa acordar na realidade. Quando morri, um dia abri os olhos e era a cidade. Eu estava sozinho no mundo. Havia um táxi parado. Sem chofer.



domingo, 4 de setembro de 2016

o intruso (3)




            ― Desculpa moço, foi mal entrar assim aqui sem avisar, mas é que... bom, é uma emergência, eu estava lá em casa e um cara veio com um papo esquisito de uma entrega, e aí ele começou a forçar a porta...
― Oxe, quase me mata de susto! Pensei logo que era assalto, agora se acalme e conte tudo direitinho, não tô entendendo é nada.
― Tá bom, tá bom, vamos começar tudo de novo: eu estava em casa estudando uns pontos de lógica formal... quer dizer, isso não vem ao caso, o que sim é importante é que a campainha tocou e ninguém foi abrir, então tive que ir mesmo estando ocupado como me encontrava naquele momento, veja, é estranho alguém subir direto sem antes a portaria avisar, não é?
― Claro que é.
― Então?...
― Então o quê?
― Me diga você que estava aqui, como é que alguém sobe pra entregar um pacote pelo elevador social a esta hora? Ainda mais sem interfonar antes...
― Vamos lá, senhor, são duas coisas bem diferentes: uma é norma de segurança, ninguém sobe sem ser anunciado, a outra coisa é, eu não tenho como saber.
― Como assim?! Você está aí pra isso, alguém chega e diz que vai entregar algo no apartamento X, daí você liga pro número correspondente nesse comunicador bem na sua frente, e tchan-tchan-tchan: o morador do número X atende, desce, assina os papéis e o entregador vai embora. Não precisa nem entrar no prédio, certo?
― Certo.
― Bom, então me diga... como é mesmo o seu nome?
― Waldomiro Peixoto, mas só me chamam de Peixoto.
― Então, Peixoto, quem era esse cara, o que ele vinha entregar, pra quem era a encomenda?
― Já lhe disse: não tenho como saber.
― Parece que estamos tendo um sério problema de comunicação aqui. Me explique como é que aquele homem se materializou na porta da minha casa sem antes ter passado por você.
― E como vou saber? Acabei de pegar o serviço agora. Esse camarada deve ter subido antes de eu chegar, o rapaz que tava aqui saiu inda agorinha...
― Minha nossa, que cagada. Desculpe o palavrão, mas é que o assunto é sério, esse cara deve ter jogado uma conversa no seu colega e subiu, ou, sei lá, alguém na minha casa atendeu o interfone e deixou ele subir inadvertidamente, então vocês trocaram o turno e, nessas, enquanto você assumia aqui, o malandro já estava lá apertando a campainha de casa cheio de más intenções.
― Se acalme, homem, como tem tanta certeza de que o tal entregador tinha más intenções?
― Primeiro pela atitude, o cara tinha pouca educação e muita pressa que eu lhe abrisse a porta, além do mais, quando disse pra ele descer e deixar o pacote na portaria, ficou mudo e começou a girar a maçaneta e a empurrar a porta.
― Essa realmente é uma atitude suspeita.
― Sem querer lhe dizer como é que se faz o seu serviço, mas já dizendo, não acha deveríamos estar ligando pra polícia e prevenindo os outros moradores neste momento?
― Verdade seja dita, o senhor tem razão, mas ainda temos um último probleminha.
― E qual seria este último problema que nos impede de agir imediatamente, Peixoto?
― Qual apartamento o senhor disse que mora mesmo?
― Acho que não disse, esqueci, sou do 143, bloco A.
― Pois é aí que mora a encrenca: o senhor não é do 143, bloco A, o senhor não é morador daqui..