Precisavam
justamente de alguém com disponibilidade para trabalhar em “horários
flexíveis”, e foi assim que emprestei a soldo minha absoluta falta do que fazer
à empresa Afterlights. Disponibilidade é meu nome, sobrenome desocupado. Talvez
na época eu tenha estranhado a contratação mega express ultra rápida (a
entrevista com o dono da firma durou uns 15 minutos), mas devo ter-me
convenientemente convencido que é assim que a banda toca no universo em
desencanto das start ups: dinamismo, alta competitividade e zero conversa mole.
Além do mais, os caras me registraram, e, nestes tempos golpistas e bicudos,
“resistro” em carteira tá mais difícil de achar do que nota de 100. Abracei com
as quatro patas.
―
Estou vendo aqui no seu currículo que você é escritor, tá ciente da nossa
cláusula de confidencialidade? A natureza específica do seu trabalho conosco é
absolutamente sigilosa, não vai poder aparecer em futuro algum, nem em prosa
nem em verso.
― Oh, não se
preocupe com isso, talvez a melhor maneira de guardar um segredo seja dentro de
um livro meu. Pro senhor fazer uma idéia, a minha mãe não foi no lançamento da
coletânea de contos que publiquei no ano passado.
― Não me chame
de senhor, sou mais novo que você. Espero que, a esta altura, já tenha estudado
nossos propósitos, valores e missão no site, e esteja claro como é que o app
funciona.
― Bom, li sim,
mas admito que ainda restam algumas pequenas dúvidas do tipo: então eu fico
cadastrado no aplicativo, foto de corpo inteiro, bio, links pra redes sociais, e,
por sua vez, os clientes do portfólio escolhem pelas características, e tal,
quer dizer, não vejo muito como eu poderia dar match com os usuários de vocês...
― Hehehe,
nossos clientes têm os mais variados gostos, quanto a isto fica sussa, vai ter
demanda. Lhe garanto. O salário é como no anúncio, você recebe um fixo mínimo e
ganha comissão a partir de 10 clientes por semana. O mais importante é que você
se familiarize o mais rápido possível com os equipamentos.
Tudo
conspirava para que me atirasse de cabeça na buena onda, aparentemente as
minhas qualificações, ou a falta delas, faziam de mim o candidato ideal ao
posto na Afterlights, pelo menos era o que garantia o CEO do boteco. Tinha
acabado de reiniciar pela trocentésima vez meu segundo romance inacabado,
impublicável e invendável como o primeiro, ou seja, dispunha de tempo, falta de
dinheiro e vontade de ficar o mais longe possível da opressora página branca. Infelizmente
para mim para o mundo, não era o famigerado bloqueio criativo a me paralisar,
mas a autoestima que andava abaixo de cu de cobra: por um desses lapsos que
Freud explica com um risinho no canto da boca, meu editor me respondeu um
e-mail copiado com a avaliação dos originais pelo conselheiro editorial da
casa. O camarada torou meu manuscrito sem dó, apanhei mais que pobre na mão da
polícia.
Boa descrição, diálogos apresentáveis.
Alguns momentos divertidos, outros delicados. Em resumo, um romance de palavras
bem escolhidas. A estória, porém, é um saco. As primeiras 30 páginas se arrastam
como uma lesma em slow motion, repletas de exposição, o resto não chega a seus
pés. A trama principal, ou o que há dela, é recheada de coincidências
convenientes e motivação fraca. O protagonista é homem, branco,
heteronormativo, cisgênero e bidimensional, praticamente desprovido de
interesse ou conflitos relevantes, tropica ao longo da narrativa embrulhado
numa grossa camada de tédio – o que não impede de lhe acontecerem as coisas
mais insólitas e de conhecer misteriosas personagens. Tensões não relacionadas
que poderiam transformar-se em subtramas nunca chegam lá. Personagens nunca
revelam ser algo mais do que parecem, a tantas horas, um providencial terremoto
(!) livra o autor de resolver a maioria deles. Nenhum panorama momentâneo da
vida interior dessas pessoas ou de sua sociedade. Freqüentes pseudodiscussões
filosóficas regadas a erudição alheia truncam a fluidez do texto. É uma coleção
sem vida de episódios previsíveis, mal contados e clichês que caminham a passo
de bêbado para uma confusão sem sentido. PASSE ADIANTE.
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