sábado, 10 de setembro de 2016

o intruso (final)


― Desculpe, de qual apartamento o senhor disse que veio mesmo?
― Acho que não disse, esqueci, sou do 143, bloco A.
― Pois é aí que embaça: o senhor não é do 143, bloco A, a bem dizer, o senhor não mora aqui.

Foi a minha vez de levar um susto. Dei um passo para trás como se fugisse da pior das notícias, só que, mesmo depois de terem cessado de vibrar no ar, aquelas palavras entraram em violenta agitação dentro de mim, seres estranhos a meio caminho entre a matéria e a vida, como que me giravam à roda da cabeça, ondulantes, peremptórias, inundando a corrente sanguínea com os instintos básicos de lutar ou fugir. “O senhor não mora mais aqui”, repetia o pensamento, “não mora aqui”, mas a memória disparava o alarme com o tal do “mais”: “não mais aqui”, (claro!, que imbecil, como poderia ter esquecido?, morei neste prédio há muitos anos, meu último endereço antes de deixar a casa dos pais), de forma que a questão óbvia era saber se a minha família ainda residia ali. O porteiro tirou da gaveta uma pasta encadernada com folhas de plástico onde constavam os nomes e os respectivos conjuntos dos moradores do condomínio, e esperou com calma budista que, apresentado ao encadeamento de causas e efeitos sob a luz ofuscante das evidências, acabasse por finalmente aceitar a minha condição de forasteiro. Para cúmulo do desespero, segundo o caderninho que ele me estendera, no apartamento 143, bloco A, moravam pessoas que eu desconhecia por completo.

― Peixoto, você não tá suspeitando de mim, tá?
― Tô sim, mas, por outro lado, se você estivesse assaltando nós, já teria botado um cano na minha cara.
― Bem, não deixa de ser uma forma de confiança...
― Você é branco, bem vestido, fala difícil... por que escolheria o edifício Presidente, que só tem fodido e tiozinho aposentado?
― E quanto ao cara do 14° andar? Ainda precisamos fazer alguma coisa a respeito.
― Ok, mas veja, se eu for acreditar no que tá me dizendo, são 2 os desconhecidos: você, e o tal sujeito...
― Mas eu não estou tentando invadir a casa de ninguém, Peixoto!
― Depende, o senhor disse que faz poucos minutos estava num apartamento que não lhe pertence, e agorinha entrou feito pé de vento nesta guarita falando um monte de coisas sem pé nem cabeça.

Não havia como retrucar a uma lógica tão meridiana e embasada em tantos fatos sólidos. Fiquei sem resposta, esfregava nervosamente o rosto com as mãos como se a solução pudesse ser extraída dali a fórceps. Só me restava apelar para o resto de credibilidade que a aparência conferia aos propósitos descabelados da minha conduta. Quanto mais eu refletia sobre a situação, mais suscitava questões acerca das minhas atitudes: parecia um ator amador, cuja voz diz uma coisa, e cujos gestos e olhar, outra. Era tudo muito confuso. Mas, como os sonhos ou as mentiras, mensagens confusas também são mensagens. E verdades contadas atabalhoadamente podem ser mais reveladoras, e até mais verdadeiras, que outros tipos de verdade.

            ― Vamos fazer o seguinte: o senhor fica aqui no meu lugar um instante, que eu vou dar uma olhada nos elevadores ver se há alguma movimentação estranha. Valeu?
― Só posso lhe agradecer a confiança. Espere, espere, E como faço pra abrir a porta aos moradores que chegarem ou saírem?

Explicou-me o sistema de abertura das portas e garagens e saiu caminhando mansamente pelo hall na direção dos elevadores. Sentia uma certa calma, o primeiro bálsamo de relaxamento daquela noite esquisita, as coisas pareciam haver retomado os trilhos da normalidade. Abri e fechei portões, recebi entregadores de pizza, forneci indicação de ruas a passantes eventuais, e, tirando um ou outro condômino que estranhou minha presença na guarita, tudo corria em paz. O ambiente da portaria era de uma desolação atroz: a luz branca, o espaço mesquinho, a obrigação de imobilidade completa, tudo isso arrematado pelo radinho sintonizado num programa policialesco. Passada uma hora desta rotina, comecei a entrar novamente em pânico: por que o Peixoto não voltava? Estava a ponto de abandonar o meu posto, quando apareceu saindo do prédio um homem alto, envergava um incongruente sobretudo para a noite de verão. Era a encarnação perfeita do típico suspeito de filme noir.

            ― Ei, senhor, por favor, de onde está vindo?
― Perdão?!
― O senhor me desculpe, é que estamos tendo um pequeno problema com um entregador que subiu e...
― Então é sua obrigação resolver o problema, e não importunar os moradores. Aliás, por que está sem o uniforme de trabalho?
― Justamente, o porteiro precisou sair pra verificar e fiquei aqui no lugar dele. O senhor viu alguma movimentação fora do habitual?
― A única coisa fora do habitual aqui é você, faça o favor de me abrir a porta, sim? Outra coisa: procure tratamento, pelo jeito o senhor está bem fora da casinha.

O camarada saiu de maus bofes, pisando duro no pavimento da entrada social. Não havia nada a fazer, retombei numa desesperança opaca e impotente. E se o homem do sobretudo estivesse certo? Eu poderia estar louco, ou talvez sonhando. Abri a gaveta à minha frente sem saber exatamente o que procurava. Um canivete chamou-me a atenção, pensei: se estiver sonhando, só há uma maneira de sair daqui ― morrer no sonho significa acordar na realidade. Quando morri, um dia abri os olhos e era a cidade. Eu estava sozinho no mundo. Havia um táxi parado. Sem chofer.



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