Candy deu uma
tragada no cigarro eletrônico desprendendo uma fumaça inodora, ajustou o equipo
do soro no braço da paciente e regulou a infusão do anestésico e do relaxante
muscular. A mulher deitada na cama hospitalar rapidamente perdeu a consciência.
Fez uma mesura exagerada na direção de Ana Cecília, que acabara de entrar na
sala de eletroconvulsoterapia.
“Ora, minha
querida, retire esse meio sorriso desaprovador do seu rosto lindo e junte-se
aos que batalham pela saúde mental da humanidade sofrente.”
“Não seria eu
a tirar de você o prazer de um eletrochoque. Mas vim para lembrá-lo da reunião
com a Anvisa, acho que vamos ter uma boa batalha hoje pela continuidade da
nossa pesquisa em prol da ‘humanidade sofrente’.”
“Ora,
bobagens! Os aparelhos antigos produziam pulsos longos, sinusoidais, agora veja
esta belezinha: um eletrodo só na têmpora direita da dona Maria, um estímulo
elétrico ultrabreve de 0,25 milissegundos e... voilà, tratamento antidepressivo
rápido, menos efeitos colaterais, e remissão prolongada”, um pequeno
estremecimento perpassou o corpo da paciente, cujo rosto se contraiu adquirindo
uma coloração azulada evanescente, no canto da boca entreaberta escorria um
filete espesso de saliva.
“Você acha
mesmo que os benefícios dessa técnica compensam a perda de funções cognitivas
que ela acarreta?”
“Minha cara,
se ignorance is bliss, por que não o seria o esquecimento? No palácio da
memória há muitas masmorras de suplício. Em primeiro lugar vem o dever, sendo
assim, vamos.”
Candy tirou o
jaleco e as luvas, deu uma rápida ajeitada no terno e carregou no celular os
arquivos da sua fala para os técnicos do governo e os investidores privados.
Sabia que os questionamentos quanto aos riscos da pesquisa que conduzia no
laboratório colocavam em risco o fluxo dos financiamentos e doações, mas na sua
auto-suficiência não havia espaço para hesitações. A mídia acompanhava com lupa
os resultados do testes em cobaias humanas recrutadas nas prisões ― havia um
óbvio interesse público na promessa contida no Super K, cura rápida e
permanente da maior epidemia do século XXI, mas o número crescente de vítimas
fatais do experimento clínico começava a despertar a crítica especializada.
Alguns analistas falavam abertamente em rever os protocolos de segurança, mesmo
quando se tratasse de condenados à morte ou prisão perpétua. Ana Cecília
observava cada um dos seus gestos, numa atitude oscilante entre a dúvida e a
admiração.
“Senhores e
senhoras, antes de entrarmos no assunto específico desta reunião, permitam-me
um pequeno excurso. Todos aqui sabem que as novas biotecnologias possibilitaram
o que antes era assunto da ficção científica: superar o envelhecimento
biológico e a morte. A idéia de que todos os organismos, e até mesmo a vida,
sejam algoritmos dentro de um processamento de dados levou a avanços dramáticos
em nossa estrutura política e social. O surgimento da computação quântica, o
domínio do processo de envelhecimento celular, tecnicamente conhecida como
apoptose, e o desenvolvimento das enzimas reparadoras de defeitos genômicos,
que corrigem a degeneração causada pela radiação, levou ao advento de uma
inédita geração de humanos imortais. Evidentemente, tais avanços trouxeram
novos desafios: o custo das despesas médicas disparou, e, na prática, o que
vemos hoje é uma sociedade dividida entre os que podem e os que não podem arcar
com o preço destas tecnologias, entre os poucos bem-aventurados e os muitos
mortais. Aprendemos a reformatar a realidade física e ecológica fora de nós,
mas não entendemos bem como o sistema da economia dos afetos funciona. Isto
resultou na ruptura deste sistema: vemos hoje uma população de privilegiados
tombar sob o peso de distúrbios mentais resistentes aos tratamentos disponíveis...”
“Doutor
Candido, sem querer interrompê-lo, mas já interrompendo, gostaria de deixar
claro que esta reunião tem o objetivo de elaborar um discurso crível para a
opinião pública”, a diretora-chefe iniciou a sabatina, secundada pelos membros
do conselho.
“O fato, nu e
cru, é que a sua pesquisa com os derivados da quetamina está simplesmente
produzindo uma pilha de cadáveres.”
“Já há quem
diga que as pesquisas médicas se tornaram um programa de extermínio em massa de
pobres, que o Ministério da Saúde virou o Ministério da Morte!”
“Quando se
tratava simplesmente de experimentar drogas perigosas em bandidos condenados, a
população tolerava bem. No máximo dizia-se: um problema a menos. Mas a coisa
saiu de controle.”
“O que o
senhor teria a propor como estratégia de controle de danos à nossa imagem de
promotores do bem-estar público?”
“Penso que
deveríamos controlar o acesso aos dados preliminares da pesquisa”, Candy suava,
demonstrando inabitual desconforto, “restringir a divulgação aos veículos mais,
digamos, alinhados com as diretrizes governamentais, focar numa agenda
positiva, afinal, há resultados animadores para mostrar. Duvido que uma
pesquisa científica possa servir de estopim para revoltas populares”
Candido e Ana
Cecília voltaram em silêncio, ela insistiu para que fossem descansar o resto do
dia depois do massacre da reunião com as agências de fomento à pesquisa. Mas o
colega e chefe não se mostrava inclinado a alterar a rotina de trabalho.
“Vou
supervisionar uma cirurgia estereotáxica agora Ana, e depois, trabalhar é o que
realmente me descansa.”
“Pára com
isso, Candy, amanhã você pode fritar cérebros com à vontade. Tenho um Chatêau
Lafitte em casa, e te prometo uma massagem relaxante. Até workaholics como você
podem tirar uma tarde de descanso. By the way, gostei muito do que ocê falou
sobre os sentimentos”
“Você sabe o
que penso sobre o assunto: subterfúgios do egoísmo. Eu te amo para que você me
ame. Vistos de perto, os sentimentos são quase sempre sinistros.”