“Um brinde ao
amor e, portanto, ao ódio, Liebe und Haß, como diriam nossos amigos de Manheim”,
tentava manter a calma, mas estavam perdendo o paciente.
“Não está
respondendo ao betabloqueador, a pressão subiu muito”, de olho nos monitores, a
médica assistente fazia os procedimentos de urgência o melhor que podia.
“Está muito
taquicárdico, 250 por minuto e não baixa. Você lembra dessa época, Aninha,
Manheim?”
“Lembro dessa
época com carinho, Candy, nós éramos doutorandos cheios de energia e sonhos, e,
se bem me lembro, você ainda não tinha se transformado nessa pessoa tão cheia
de si, tão... Você não percebe o que está acontecendo? Ele está indo, como os
outros.”
“Ora, poupe-me
do sermão, você sabe o quanto é comum que duas noções suficientemente díspares
ou opostas estejam intimamente ligadas. Como a morte se opõe a tudo na vida,
várias combinações são possíveis. Arte e morte. Natureza e morte. E o mais
preocupante, nascimento e morte.”
“Entrou em
fibrilação, me ajuda com o cardioversor e deixa de falar besteira.”
“Voltou. Mas
ainda temos más notícias: a gasometria indica uma acidose metabólica, o rim
dele parou”, ele limpou o suor da testa com as costas da mão num gesto
desanimado.
“Iniciamos xilocaína
e amiodarona?”
“Melhor não,
custos desnecessários. Daqui em diante nossos esforços não poderiam ser mais
irrelevantes, já vimos essa reação. Os mortos não respondem a mais ninguém, a mais
nada. Assim que isto estiver terminado, podemos tentar escrever um artigo. O
mundo clama por novos empiristas.”
“Não sei se
tenho a sua, hã, disposição para o trabalho especulativo, você sabe muito bem
que sou a devoradora de dados, a rainha das meta-análises. Empiristas, você
disse? Nós sacrificamos tudo no altar das evidências disponíveis, e as
evidências sugerem fortemente que esta droga não é segura. Não. Definitivamente
não possuo essa sua veia poética e, por que não dizer, midiática.”
“Bom, bom, no
ponto em que estamos ainda não é chegada a hora da exposição pública, mas
acredito que estamos muito perto de algo grande. Não acha?”
“Quer saber
mesmo o que eu acho? Acho que estamos brincando com fogo, isso sim. Este pode
ser o melhor antidepressivo da história, mas é simplesmente tóxico demais. Olha
pra ele, o rapaz mal tem 20 anos.”
“De novo, é um
par de opostos saindo do lance de dados: veneno e remédio, tudo ou nada. Você
viu os resultados preliminares dele, nós estamos na pista certa, Ana, sabemos
que sim. Alguns sacrifícios são necessários pra que...”
“Houve um
tempo em que acreditei nisso, Candy, achei mesmo que estávamos destinados a
grandes descobertas, a penetrar os segredos mais bem guardados do cérebro. Uma
tolinha romântica eu era, apaixonada pela sua maneira elástica de andar, pelas
suas gravatas sofisticadas, por essa habilidade sibilina de sempre encontrar as
palavras certas. Você sempre dominou a grande arte da retórica: fazer as coisas
coincidirem com as palavras, dar a impressão de que o quebra-cabeças estava a
poucos passos de ser resolvido. De uma vez e para sempre.”
“Além do mais,
você sabe, esse daí não era boa bisca.”
Ana Cecília
debruçou-se sobre o corpo na cama hospitalar e fechou-lhe os olhos, depois,
subiu o lençol cuidadosamente cobrindo o rapaz por inteiro. Orlando da Silva
Luís, paciente 23. Desligou todos os aparelhos de monitoramento dos sinais
vitais. A linha do eletrocardiograma era uma reta monótona e ininterrupta. Na
sua mente, clara como uma lâmpada de desenho animado, aparecia a imagem da sua
cachorra de estimação imóvel sobre a mesa de metal do veterinário. Morto em
poucas horas após administração endovenosa. Pico hipertensivo não respondente
às drogas convencionais, somado a uma falência completa do sistema urinário:
necrose renal bilateral extensa e lesões irreversíveis na bexiga. A química sem
piedade, propósito ou remorsos. Estamos sujeitos às mesmas regras obscuras que
infernizam nossos animais queridos, a grande coleira do não ser também está no
nosso pescoço.
Candido
Frota-Pessoa, psiquiatra-chefe do laboratório se fechara na sua sala e
preenchia os relatórios de pesquisa detalhando cada uma das reações que o
paciente apresentara antes de vir a óbito. Não era a mesma coisa de antes, ao
menos, não para ela. Os novíssimos protocolos de pesquisa farmacêutica
autorizavam testes fase 3 em humanos “selecionados” muito antes da segurança das
drogas estar plenamente atestada em cobaias. A reanimação cardio-respiratória nem
mesmo era obrigatória: os voluntários eram recrutados no presídio entre os
condenados à morte. Era o novo Zeitgeist. Alguns humanos mereciam menos
compaixão do que os bichos. Direitos humanos, dizia-se agora abertamente, só
para os humanos direitos.
Ela e o chefe
estavam imbuídos da missão mais intrigante do século, debelar a epidemia
depressiva que varrera o planeta havia se tornado o Santo Graal das mentes
científicas mais brilhantes e ambiciosas. Bilhões de dólares eram despejados
nos laboratórios ao redor do globo, mas as descobertas não seguiam o ritmo
desejado. A maioria das drogas antidepressivas disponíveis mal superavam a
melhora obtida com placebos, e pior, demoravam meses para surtir efeitos
parciais, além de serem pouco eficazes na prevenção de recaídas. O Super K e
seus derivados, apesar de não serem propriamente moléculas novas, apareciam nas
pesquisas mais recentes como a esperança de cura rápida ― e definitiva. Os
cadáveres no caminho do progresso não contavam para as agências oficiais, a
corrida estava apenas começando.
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