Até começar a conviver com os ricos, nunca
soube o que realmente os diferenciava de nós, os pobres. Quer dizer, sabia o
básico: eles mandam e conduzem, nós obedecemos e somos conduzidos ― debaixo de
vara. Freqüentemente esta vara é bem visível, no mais das vezes ela parece vir
de dentro, como um destino impresso nas más estrelas que presidem aos
nascimentos, ou codificada em genes defeituosos que levam ao crime, ao desespero,
às escolhas erradas. Sei que não é muito bonito dividir as pessoas em “nós” e
“eles”, mas não fui eu que inventei esse jogo, apenas estou tentando jogá-lo da
melhor maneira possível. Em todo caso, trata-se de aceitar os dados do mundo
tal como o encontrei, a única mudança que parece viável é a da minha posição
relativa no tabuleiro onde acontece a jogatina. Hoje estou na situação
privilegiada de poder mudar de lado, falta pouco, dizem-me repetidamente.
Possuo talentos inegáveis como autodidata na área de tecnologia da informação,
ascendi por méritos próprios a consultor de riscos financeiros ― traduzindo,
sou um dos melhores caçadores de fraudes econômicas da minha geração. Os
setores onde moram e trabalham os bem-aventurados são incríveis: seguros,
limpos, arborizados, (não há drones no policiamento ostensivo!), a sensação é
de que ali nunca ninguém precisa levantar a voz para ser ouvido e/ou respeitado.
No entanto, o meu ganha-pão me lembra constantemente o quanto os ricos são
obcecados pelos desfalques, como se, depois de espoliar os mortais, não lhes
restasse outra diversão que não roubar uns aos outros. Bem, esta é outra grande
diferença entre o andar de cima e o de baixo: eles são imortais, nós não. A
tecnologia que permite viver indefinidamente é cara e inacessível à grande
maioria da população. Natural. Seria impossível alocar recursos para que todos
pudessem consumir sem limites num sistema, que, afinal de contas, é finito. Uns
vivem, outros apenas existem. Todos os dias testemunho esse contraste. Saio da
casa dos meus pais e me desloco para a parte boa da cidade, o passe especial de
trabalho permite adentrar a Green Zone sem necessidade de quarentena, apenas um
scaneamento corporal completo. Nós pobres parecemos estar sempre sujos de uma
sujeira que não está na pele, nem nas roupas, diria que é uma mancha
estrutural, afetiva até, nossas alegrias ou tristezas são sempre exageradas, amazônicas,
ao passo que os ricos são mais controlados nas manifestações exteriores, parecem
dominar tudo à sua volta, principalmente a eles mesmos. Por tudo isso, e mais
outras observações adicionais, é que cheguei a perceber a estranheza reinante
no meu lar: há uma melancolia da minha família que nunca consegui explicar, uma
espécie de nota triste, um ritmo de fundo, contínuo, lento como as doenças
crônicas. Como se meus pais e irmãos fossem ainda mais miseráveis que a miséria
reinante naquele lugar. Apesar da imensa quantidade de dados nas minhas mãos,
aquela informação continuava a e escapar.
“Fala Orlando, tá indo pro trampo, irmão?”,
um amigo de infância, Carlinhos, um daqueles moleques do bairro que nunca
parece ter nada para fazer.
“É, vou pegar o trem daqui a pouco. Estranho
isso, não...?”
“O que é estranho pra você, meu broder?”
“As unidades de transporte especial, sempre
vejo essas vans laranja no pedaço e não entendo por quê. Pra levar as crianças
pra escola é que não é.”
“Hehehe, tu passou tempo demais estudando
pra entender certas coisas da vida”, levantou-se da pedra onde estava sentado e
caminhou na minha direção. “Tem um tempinho?”
“Se vai me contar sobre as tais ‘certas
coisas da vida’, tô dentro. Deixa só eu avisar que vou chegar um pouco
atrasado.”
“Acho que vai gostar, pelo menos cê é dos
que tem grana pra comprar a belezinha que vou te mostrar”, saímos andando, ele
na frente, por um labirinto de vielas em Bidonville com os drones de vigilância
nos filmando lá do alto. Finalmente ele parou, digitou um código na porta de um
casebre abandonado e entramos.
“Cara, não vamos fazer nada ilegal, você
sabe que eu...”
“Piano, bro, nós só vamos dar uma olhadinha.
Olhar não tira pedaço, e depois, no mapa deles, isto aqui é só um centro
comunitário pros zoiões lá de cima. Não pega nada.”
Fomos atravessando uma série de cômodos
vazios no muquifo, subindo e descendo escadas na construção irregular, que, aparentemente,
servia de esconderijo aos jovens do pedaço para fazer suas festas clandestinas.
As paredes estavam grafitadas com slogans anarquistas, declarações de amor,
tags, bombings. Num dos quartos havia um cofre, Carlinhos se ajoelhou e inseriu
o segredo na tela, a porta se abriu. Puxou lá de dentro uma caixa de papelão.
Fez uma pausa dramática antes de destampá-la.
“Muito bem, Orlando, te disseram um monte,
falaram que isso não existia mais, mas agora cê vai conhecer o que é... o poder”,
os olhos dele brilhavam no quarto semi-obscuro, as mãos tremiam levemente
segurando a embalagem ainda fechada.
“Caramba, mano, parece que vai sair daí o
gênio da lâmpada...”, tomei um susto quando ele mostrou a arma dentro da caixa.
“Puta merda, cê tá louco? Isso é crime da pesada!”
“Pois é, mas tá aqui, funciona, e vem com
munição. Quer pegar ela? Só pelo prazer da experiência, sente o peso, a
sensação de poder que a bichinha te dá...”
Saímos em silêncio, eu não conseguia definir
a maçaroca de emoções que me ocorriam naquele momento. Temia ser cúmplice de
alguma coisa que não compreendia bem o alcance. Por outro lado, aquilo era o
reverso de uma medalha que conhecia bem demais: quem não nascia em berço de
ouro precisava se virar no contrabando, no escambo, bem ou mal, a ilegalidade
não era exclusiva de nenhuma classe social específica. Carlinhos não tirava os
olhos de mim, parecia escolher as palavras adequadas para comunicar algo muito
importante ou íntimo.
“Então, mano, tu não é o nerdão do rolê?
Mexe teus pauzinhos lá no sistema dos bacanas, não deve ser difícil pra tu
saber o que são as vans laranjas.”
“Carlinhos, e por que você não me conta logo
a fita toda de uma vez? Tá na cara que sabe.”
“Tem coisas, irmão, que a gente só acredita
vendo com os próprios olhos. Tu nunca foi atrás disso porque tinha medo da
resposta. Vai de boa, na paz de Jah.”
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