Muito embora não esperassem ficar hospedados na suíte comodoro do Sheraton, sendo servidos pela Paris Hilton, ainda assim os integrantes do Noches Paraguayas não estavam preparados para aquilo. E havia ainda um problema adicional: Manolito Barros, o baixista, sofria de aracnofobia ― a coisa chegava ao ponto de não poder vê-las desenhadas: o antigo logo do Noches, que antes exibia uma lua, estrelas e uma teia com aranha, teve de ser modificado quando ele entrou na banda. Manolito berrava, em grosso calão guarani, que só aceitaria dormir naquele gabinete do dr. Moreau depois da remoção completa de todos os artrópodes e suas importunas secreções.
Raulino não deu a do braço curto, catou baldes, panos e esfregões e botou todos para dar um talento naquele tugúrio; pôs-se ele mesmo a remover, para abrir espaço aos colchonetes, umas bancadas repletas de alguidares com crânios fervidos e estantes que pareciam saídas do cenário de algum filme do Nosferatu. Das paredes pendiam os bustos de dois caribus, várias onças e jaguatiricas e um guaxinim, com aquele olhar sinistro que nos fixa em qualquer ponto; manequins de bichos de estimação, com o nome e a data de nascimento e morte gravados no pedestal, se amontoavam desordenadas no pavilhão comprido e estreito.
Mas nada se comparava ao efeito que produziam as coleções de partes de animais em vidros de conserva: potes de vários tamanhos contendo, desde sal grosso e formóis, a orelhas, caudas, genitais, membros, garras, bicos e pungentes frascos cheios de olhos. Justamente ao deslocar uma destas estantes de ferro, derrubou um dos potes que se quebrou ao cair; enquanto limpava os cacos do piso deu-se conta do conteúdo: uma única, negra e peluda, pata de macaco-prego.
Na etiqueta, que ele separou cuidadosamente dos estilhaços, estava datilografado: “Macaco-prego, Cebus apella”; colado ao verso achou um bilhete manuscrito que se desfez em suas mãos enquanto lia:
“quando este vaso
quebrar
três desejos irá
ganhar”
Com os músicos de péssimo humor, decidiu que era hora de puxar o carro dali, além do quê, não podia perder o horário do metrô. Deixou uma grana para eles comerem de manhã antes que ele viesse no dia seguinte levá-los para a passagem de som na casa de shows; deu uma gorja para o guardinha da rua e se mandou. Quando se viu na plataforma da linha turquesa da CPTM é que pensou em um desejo que gostaria de realizar ― vintão em notas, na sua mão, agora. Burunbumbum. Como um raio, passou-lhe na mente onde e com quem poderia arranjar grana para quitar seu débito com os cabeças do 'movimento'.
O óbvio. Foi para o Caldeirão; pensou em tudo, ia direto para o escritório que ficava nos fundos da balada e falava a real para o patrão, pedindo logo um adiantamento do cachê dos músicos. Fim de ano, muita propina para pagar aos ‘pacos', o chefe devia estar com alguns pacotinhos mágicos lá no cofre. Não tinha como dar errado.
Chegou na Augusta, uma zorra do caraca, equipe de televisão, cordão de isolamento, sirenes, burburinho na porta do Caldeirão do Diabo; no meio da quizomba, encontrou o Xico Ciência e assuntou com ele para descobrir que os federais tinham estourado o ponto. Mais uma daquelas operações estilosas que aparecem no Jornal Nacional; porém diferente daquela que engaiolara Precioso, esta se chamava “Caminho das Estrelas”. Puta que pariu! Maldisse a sorte e despediu-se apressadamente do amigo. Uma última louca esperança o animava.
Chegou ao pátio comum do cortiço que lindava com os fundos do escritório da boate; até ali podia ir sem ser visto, precisava apenas esperar o espetáculo midiático retirar-se para tentar a sorte. Rezou para a Virgem de Caacupé, pediu-lhe um milagre. Tão logo os policiais, funcionários e repórteres saíram, ele entrou e foi direto ao cofre que os porcos não conheciam, mas onde ele sabia que o dono guardava drogas, uma 765 e cash. Bingo!
A sua sorte estava mesmo mudando, a combinação, como ele suspeitava há tempos, era a seqüência de números que o patrão sempre jogava na Mega Sena (como garoto de recados, ele pegara muita fila de lotérica para o famoso empresário da noite). Voltou correndo para casa. No caminho descobriu no seu celular, que tinha se desligado sozinho, mais de trinta ligações e mensagens desconexas de Aluízia. Abriu a porta.
― Aiiiiii Rau, que mataron nuestro manito, aiii... ― chorava e andava pelo apartamento como louca ― lo reventaron todo, lo reventaron Rau!!
― ¿Qué dices?... mas como, ¿quien?, mas cálmate hermana...
Ligou a TV, os plantões noticiosos mostravam um Audi esportivo amassado, a árvore arrancada com a batida e uma trouxa de panos de coloridas bandeiras amortalhando uma criança que tinha sido atropelada e morta na calçada pelo carro desgovernado. O dono do carro prestava agora momento seu depoimento na delegacia, mas, segundo o que o advogado do motorista dizia aos jornalistas, sem um flagrante devidamente registrado, dificilmente seu cliente deixaria de sair hoje mesmo sob fiança estipulada em 29 mil reais. Os colegas do menino contavam aos jornalistas que o conheciam pouco, o chamavam de “gringuinho mudo”.
― Pero, ¿es cierto que sea él?...
― Sí que es cierto, estuve lá! Aiiiii! Lo reventaron todo, a nuestro Rosi, nuestro hermanito, Rau... Aiiiii!
O rapaz tentava raciocinar, pensou em ir reclamar o corpo no IML, mas ela o lembrou de que seriam presos e deportados. Deportação, nem precisavam dizer, significaria para ambos a morte imediata nas mãos dos narcos. Não podiam fazer absolutamente nada. Então Raulino lembrou-se da estranha coincidência de ter conseguido o dinheiro depois de achar a mensagem da pata do macaco. Contou à irmã toda a história. Aluízia não titubeou:
― Bueno, si así es, quiero a mí hermano de vuelta!
Ouviram barulho nas escadas do prédio. Abriram a porta, e era o horror.
Uma massa informe e sangrenta, que talvez já tivesse sido humana, subia os degraus, arrastando-se, perdendo pedaços em cada patamar, numa ascensão difícil e deliqüescente; um monstro sem voz. Rosendo. Trancaram-se em casa, vedaram as janelas, empurraram o sofá-cama para atravancar a porta; só queriam ficar longe do sortilégio que haviam convocado. Abraçados, e às lágrimas, desejaram que tudo aquilo acabasse de uma vez.
Foram encontrados, mortos, caídos um ao lado do outro. Tal como os pais deles, um ano antes. Os bombeiros avaliaram que a morte ocorreu por asfixia causada pelo monóxido de carbono: o turíbulo de queimar ervas e incensos de Aluízia, na quitinete vedada, fora suficiente.