quarta-feira, 27 de abril de 2011

a vida noturna das cobaias - epílogo


[Insatisfeita com os rumos desta história, Rivka Rappoport exigiu conversar com O Autor em particular, diálogo que rendemos a seguir verbatim. Os dois se dirigem a um recinto fechado, situado num metanível. As duas únicas cadeiras do ambiente estão posicionadas uma de frente para a outra. Sentam-se.]

A: ― Que rubrica ridícula é essa aí de cima? E que porra de lugar é este?

RR: ― Segura a língua boçal, só porque saímos da SUA narrativa não quer dizer que os leitores não possam NOS acompanhar aqui...

A: ― Aqui, aqui... isto aqui é lugar nenhum, é uma bosta de um não-lugar discursivo! Palhaçadas deste tipo é que fodem com o pacto ficcional leitor-autor, são o túmulo da verossimilhança e do foco narrativo... este nosso “diálogo” não passa de um excurso inútil e rebarbativo, subproduto da mania das digressões, a modinha das interferências e julgamentos de valor que nos legou o politicamente correto, essa fonte perene dos clichês pós-modernos!... pós-modernidade que, na literatura e na comunicação, aliás, só tem feito proliferar o ruído, o lugar-comum, a irrelevância e a euforia infantilóide ― O Autor tentou levantar-se, indignado, mas uma convenção tácita o prendia à cadeira.

RR: ― Humm, ficou putinho só porque agora não está mais no controle, é? Pois então, bonitão, seus dias de irresponsabilidade demiúrgica chegaram ao fim... você acha que é mole estar na pele dessa nerd sádica em que você me meteu?... Uma carreirista que vai para o Brasil, paga por uma das Big Pharmas, onde irá elaborar protocolos de testes de psicotrópicos em crianças africanas... É ruim, hem?

A: ― Estou farto. Pra mim chega, dar liberdade aos personagens tem que ter um limite... minha filha, acabei de introduzir você na trama, criei um clima, já, já, vai rolar uma tensão sexual entre você e o Oswaldo... serei generoso quando descrever seus atributos físicos mais adiante... ah, e ainda fui condescendente ao não revelar que você matou aquele rato a estiletadas...

RR: ― Sim, claro, Sua Alteza, O Grande Artista, cuidou para que se criasse logo de cara a empatia; primeiro você dá corda forçando a identificação com os meus sentimentos, depois, enforca no repuxo, quando aparecem as conseqüências dos meus atos... Foi isso que você aprendeu nesses cursos de escrita criativa? Eu era para ser só uma personificação da malvada economia de mercado e encarnar o casamento perverso do Saber com o Poder; mas acabei ganhando profundidade e relevo, uma certa ambigüidade de caráter que provoca a aderência do leitor, hipócrita e irmão.

A: ― Você não entende? Este desvio metalingüístico em que caimos, esta maldita dê-erre, faz os leitores fecharem o livro e pular na internet, na TV, no joguinho de celular, no caralho a quatro... a competição é cada vez mais feroz pela deficitária atenção da humanidade... procura outro trouxa, o papai aqui já desistiu de escrever sobre a filhinha rebelde!

RR: ― Filha sua sou sim, mas você não é pai, é mãe. Você me carregou dentro de você, é verdade, mas quem me cria é esse aí, que está nos lendo agora (ou não). Sator arepo tenet opera rotas, o semeador que tem nas mãos as rodas da charrua; será possível que o discurso indireto livre tenha lhe transtornado a esse ponto e você acredite mesmo nisso? Um Taumaturgo que assegura com sua força a rotação do universo...

A: ― ...se Deus pudesse contar a história do Universo, o Universo se tornaria fictício...

RR: ― ... Deus pode muito bem ser apenas mais um frustrado como você, que precisa expurgar nas personagens femininas a rivalidade com a irmã, essa ciumeira que nem vinte anos de divã psicanalisaram... Ela ainda te paga umas contas de vez em quando, não?

A: ― Puta que pariu! O que mais temo nos meus futuros biógrafos é essa psicologia de boteco, explicar minha obra pelas taras, os complexos e a inveja; um papo de cocô-xixi, o pipi do papai e a tetinha da mamãe... Saco!...

RR: ― “Futuros biógrafos”, hahaha, olha só o pedante, se achando o Chuck Palahniuk dos trópicos... acorda pra vida senhor Narrador Onisciente Intruso, você é um escriba obscuro de uma língua periférica... se ainda escrevesse em inglês ou mandarim, vá lá... falando nisso, por que não estou falando a minha língua mãe?

A: ― Bah, língua madrasta é o que é... Você não imagina o sofrimento que é ficcionar, colocar-se entre parênteses e dar vida ao que é familiar e estranho em você mesmo, se doar... olhe para dentro de si mesma: tudo que vai encontrar é um eu fascista e intoxicado de auto-referência...

RR: ― Pára, pára, que eu vou chorar... quanto altruísmo e doação, quase me faz esquecer a aliteração imbecil: “r” de Rivka, de Rappaport e... de rato! Um recadinho em código para os seus amiguinhos acadêmicos se masturbarem com a vibrante línguo-dental.

A: ― Bom, mas o que é que você quer de mim? Por que me chamou?

RR: ― Quero... hãam, ficar viva...

A: ― Kkkk, a doutora PhD, senior researcher da Clínica Mayo pede misericórdia implorando pela sua inexistente existência?

RR: ― Você poderia não me eliminar antes do final do livro? Assim eu continuo viva indefinidamente, ou até posso voltar em outra história...

A: ― Entendi... só que, em vez disso, vou te libertar de vez, como fez o Pirandello com aqueles seis... Por que você não poderia se tornar Hamlet?, afinal, Sócrates existiu mais ou menos que os heterônimos pessoanos?, quem era Whitman, me, I ou myself? Dizem até que Bioy Casares não passou de um personagem que Borges inventou para escrever o romance perfeito que nunca escreveu...

RR: ― Ei, já ouvi falar disso: Kafka dizia que o Quixote na verdade foi uma criação de Sancho para poder viver uma vida aventurosa; você acha que eu poderia...

A: ― Faça o mesmo que eu fiz, crie um universo, dê-lhe consistência e espere... em pouco tempo assistirá seus personagens ganharem vida... e as coisas sairão inevitavelmente do seu controle...

[Rivka Rappoport viu-se repentinamente sozinha no vácuo. Entendeu que havia somente uma coisa que podia fazer. Ela criou o Céu e a Terra em seis dias. Por uma questão de direitos autorais, nosso relato não poderá ir além deste ponto, Rivka Rappoport assinou com uma grande editora e será convidada especial da Flip.]

3 comentários:

José Doutel Coroado disse...

Caro Missosso,
Muito bom!!
abs

Dalva M. Ferreira disse...

Uau! esse "túmulo da verossimilhança" ficou de uma verossimilhança incrível! Pude sentir até o cheiro da tensão entre A e RR. Você é mágico!

filipe com i disse...

tks amigos e leitores, estas sào as dores de escrever: as criaturas voltam-se contra nós!