quinta-feira, 1 de setembro de 2011

os zerossexuais (parte final)


Do lado de fora do banheiro, a moça procurava acalmá-la, insistindo que parasse de gritar para que pudesse explicar a situação. Passou-lhe roupas pela porta assim que se convenceu de que não havia perigo. Chorava muito.
Até que tomou coragem e saiu.
Uma olhadela rápida desfez a hipótese maluca que se formara na sua cabeça: não tinha feito sexo com um travesti ou algo do gênero, diante dela, inteiramente nua, estava uma pessoa que positiva e definitivamente pertencia ao sexo feminino.
Na certa essa zinha daí havia se infiltrado na casa dela, enquanto o comparsa fazia a “limpa”. Detalhe incômodo que não encaixava: o que faziam as roupas do cara de ontem espalhadas pelo chão do quarto?
― Não tenho dinheiro vivo em casa, as poucas jóias você vai encontrar naquela gaveta...
― Você pode ficar descansada, não vim aqui atrás disso; este é um assunto delicado e que diz respeito a nós dois... digo, nós duas...
― Cadê o cara das flores, que veio ontem? Por quê vocês precisavam me enganar desse jeito? ― a Mulher soluçava desconsolada, só queria que tudo aquilo acabasse logo.
― Aí que tá, o Alfredo sou eu.
― Hahahaha, fala sério! Essa é boa, me diga... então você tava usando um consolo ontem à noite?... mas, e os peitos, e esse cabelão, como é que você disfarçou tudo enquanto me passava a cantada?
― Em primeiro lugar, não foi uma cantada; segundo, ontem eu ainda não tinha sido transformado por você...
― Como assim, transformado? É trans-for-ma-da, você é uma mulher!, ou está querendo me dizer que você é uma espécie, assim, de camaleão do sexo?
― Do sexo não, do amor. E você também é.
A Mulher deixou-se cair na cama queen size, era muita informação demais. O incrível é que agora, reparando bem, a fulana realmente parecia uma versão feminina do homem que lhe proporcionara uma noite inesquecível.
― Sei que não é fácil para você, como não foi para mim quando descobri... somos assim, adquirimos a forma daqueles a quem amamos.
― Somos?... somos? Fale apenas por si! Quem é você para me dizer o que eu sou ou deixo de ser?
― A maioria das pessoas tem, vamos supor, uma alma sexuada: homo, hetero, trans, bi... nós não, depende por quem nos apaixonamos; não é uma identidade definida à partida, mas que acontece enquanto o jogo é jogado.
― Sei, sei... quer dizer que você virou a casaca porque se apaixonou por mim, mas... e se eu não achar graça nenhuma em me relacionar com outra mulher? Como é que fica, você vai ter mudado à toa?
― Às vezes acontece; eu posso ter encontrado o que estava procurando, mas você não. Dependendo da ferida que isso me causar, posso continuar como estou ou voltar para a forma anterior. Não dá pra saber...
― Que maravilha de cenário: se te abandono, você volta a ser aquilo que eu queria que fosse...
Emprestou-lhe umas roupas suas meio fora de uso, já que as de Alfredo não lhe serviam mais ― pelada é que não ia deixá-la ficar. Passaram para a cozinha, um café bem forte seria a melhor maneira de tentar recomeçar aquela manhã esquisita.
― ... imagine que o gênero feminino e o masculino fiquem num continuum que vai de +1 a -1, são infinitas as variações... mas no meio haverá sempre o zero, que não é um número, mas um buraco na linha, um vazio cheio de possibilidades...
― Pode até ser, mas nesse seu layout atual, vai ficar ruim de encarar você de novo... ao menos como aconteceu ontem...
O sol da manhã batia no peitoril da janela, da cozinha ouviam a rua se encher dos ruídos do dia; encolhidos nos seus pensamentos, dois animais humanos, famintos e canibais, contabilizavam suas feridas avaliando o próximo passo.
A Mulher rumina, indecisa.
Na balança da vida pesam mais as dores e perdas; e só haverá redenção se obtivermos qualquer porção, grande ou pequena, efêmera ou duradoura, de conhecimento ou beleza ou amor.
Mas a verdadeira graça está no amor.

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