quarta-feira, 11 de janeiro de 2012

em 10 suaves prestações (epílogo)


― Então a senhora não sabia? Aquela região é campeã desse tipo de ocorrência, ali, já viu, tem de ficar de olho no gato e na frigideira. Ainda mais, mulher sozinha em carro sem insulfilm... ― o escrivão me atendia com uma, para mim, incompreensível má-vontade; talvez o meu caso estivesse piorando as estatísticas daquela delegacia.
― Trouxe o meu carro... se vocês quiserem dar uma olhada, sei lá, periciar...
― Periciar?! A senhora anda assistindo CSI demais, viu como é que a coisa tava lá na sala de espera? ― o subtexto era claríssimo: com tantos casos piores para dar conta, ocorrências banais se encerram com o preenchimento de um papel.
― Não tem, tipo, um álbum com fotos para reconhecimento? Quer dizer, não é que eu tenha visto grande coisa... ― pela cara que ele fez, percebi que era hora de me retirar. Estava a ponto de desacatar uma autoridade no cumprimento de suas funções, imaginem, sugerir que algo deveria ser feito.
Irmanando amigos e autoridades, e até os próprios ladrões, havia um curioso discurso convergente: melhor esquecer, pôr uma pedra em cima do assunto, já que não tinha acontecido “nada” comigo. O dinheiro era o de menos.
Bloqueei todos os cartões roubados com facilidade. O problema foi negociar o prejuízo com os bancos; só os dois cartões vinculados a conta corrente e poupança haviam sido usados para saques no valor de quinhentos reais cada. O Santander devolveu-me integralmente a quantia roubada com a apresentação do boletim de ocorrência e o extrato de movimentação. No Banco do Brasil a conversa foi bem outra.
― Olha, se a senhora quiser, dá pra preencher este formulário de solicitação de ressarcimento... mas é política do banco, senhora, precisa quitar o empréstimo primeiro.
Um detalhe: os caixas eletrônicos das agências oferecem empréstimos pré-aprovados na tela inicial dos aparelhos; de posse da senha, os seqüestradores contraíram um empréstimo de mil reais que o banco com o nome do meu país agora me dizia que não negociaria comigo. Com a metade que restava na conta (não sacada por exceder o limite diário) paguei o valor roubado, mas os quinhentos residuais seriam descontados em dez parcelas mensais da minha conta corrente.
Quem não concorda sempre pode entrar na Justiça. Consultei um amigo advogado que tratou de esvaziar meu balão.
― Difícil ganhar da União. Eles sempre recorrem, em todas as instâncias; no final, você vai ter gasto bem mais do que o valor em questão. Não compensa.
Fala-se muito da velocidade com que as relações atualmente vêm se transformando ― a célebre constatação de Marx de que no capitalismo tudo que é sólido se desmancha no ar. Talvez seja mesmo verdade, talvez a sociedade em que vivemos se encontre num processo frenético de financeirização de tudo e de todos. Tudo vira mercadoria e tudo se torna intercambiável.
Ali, dentro do carro, eu só queria que a máquina do mundo vomitasse logo o dinheiro que me resgataria do desamparo extremo em que me encontrava. Eu quis ser apenas uma caixinha que eles abrissem, tirassem o que queriam e me deixassem intacta o mais rápido que isso fosse possível. Eu queria ser apenas um número para eles ― e que eles passassem logo para o próximo número. Não queria virar notícia.
“A senhora não sabia?”, a frase do escrivão me vem à mente de tempos em tempos. Quanto mais procurava tomar atitudes práticas sobre os fatos, mais ouvia que, pragmaticamente, a melhor coisa a fazer era não fazer coisa nenhuma. Sequer posso tirar o Banco do Brasil da minha vida, porque há cursos, supervisões e grupos de estudo que realizo que só podem me pagar nessa conta.
Todas as (poucas) vezes em que ainda utilizo uma caixa eletrônica do BB, olho bem na direção da câmera filmadora que existe sobre a tela de opções e digo: “Vocês sabem mesmo por que estão me espiando?”
Tenho um amigo, também psi, que afirma que até as ditaduras são o reflexo da vontade de um povo; para ele, “tudo é desejo”. Não sei. Não desejei para mim o que me aconteceu, nem desejo pra ninguém, aliás. Se algo aprendi com tudo isto, foi que somos submetidos a dois níveis de violência mutuamente dependentes: um, mercadológico, em que a integridade corporal está diretamente em jogo; e o outro, que é a jaula cinzenta e invisível da burocracia. A burocra não é sólida nem se desmancha no ar.
A minha é uma história relativamente comum na cidade em que vivo, mas acredito que poderia acontecer na maioria das ruas, cidades e países do mundo. O que chama a atenção é a mania nacional, a compulsão creditícia, a paixão por dividir tudo em vezes no cartão.
Em que outro lugar do mundo se poderia pagar um seqüestro em dez suaves prestações?

2 comentários:

Dalva M. Ferreira disse...

Pimenta no caixa eletrônico do outro é refresco, mermão. Belo conto.

José Doutel Coroado disse...

Caro Missosso,
bela moral nessa estória!
abs