O tenente Carmona tem idéias definidas:
― Pega um, mastigando você pensa melhor ― estendeu-me a embalagem de
chicletes sabor canela.
Não gosto de chicletes, nem do sabor canela, mas aceitei porque era a
primeira coisa que me ofereciam além de tabefes e socos nas costelas naquela
delegacia.
― Desculpa tenente, não é querer lhes dizer como fazer seu trabalho, mas o
senhor poderia dizer ao pessoal do plantão pra parar de bater no meu amigo
Tomate? Não é má vontade dele, ele não fala mais desde que foi atropelado e
perdeu um meio quilo de miolo...
Pelo rádio pendurado no peito do uniforme cinza do oficial chegou um
sucinto QAP informando que o elemento conhecido como Chacal acabara de bater os
chinelos de dedo, sem se alterar, respondeu burocraticamente e voltou a fixar
um ponto bem no fundo dos meus olhos.
― Que leve meu salve pessoalmente ao Satanás. Parabéns pra rapaziada.
Tardei pra reagir com algum grau de adequação à nova situação: tiroteio
num bar de perifa, seqüestro do negão da SUV, e dois suspeitos que não estavam
“colaborando” nas investigações da entediada equipe de plantão da delegacia
local, isso que dá ter cheirado em serviço, agora pra voltar ao modo normal de
cidadão brasileiro lidando com o serviço público da pátria amada tava osso, minha
sugestão de que uma reportagem sobre as difíceis condições de trabalho da
polícia militar não despertava o menor entusiasmo no Carmona, ele parecia mais
interessado em outro detalhe do caso.
― Gringo, você disse? Veja, meu amigo, se você me ajudar, eu te ajudo,
tamo aqui trampando de madrugada por um salário de fome, esse caso complica
cada vez mais, e não tem nem uma apreensão, um agradinho pros rapazes. Assim
fica difícil.
― Claro, claro, entendo bem esse lado, senhor, trabalhar por salário de
fome é comigo mesmo, é que... já disse tudo várias vezes, tentei fazer o gringo
desistir, mas ele é loucão, queria porque queria conhecer os fluxos da
quebrada, acha que a nossa malandragem é revolucionária, e coisa e tal, esses
papo de ongueiro esquerdopata...
Naquele momento entrou um policial civil na saleta obtendo a inteira
atenção do tenente, segundo as notícias, dois agentes da federais estavam a
caminho e o caso subia de jurisdição, não seria nem chamada a divisão
anti-seqüestros da capital, o PM se levantou subitamente me descartando da sua
zona de preocupações imediatas, o consulado americano havia confirmado a minha
história.
― Tu fica aqui mesmo, os caras tão vindo ― o tenente Carmona percebeu que
eu fiz menção de me levantar ― Moraes, avisa seus homens pra diminuir com o
outro suspeito lá, parece que é débil mental mesmo. Você vai sentir saudade de
nós, meu amigo.
O chiclete tinha um gosto terroso que demorei a associar com o gosto de
sangue oriundo dos tabefes dos tiras, era de se admirar a limpeza e eficiência
das autoridades: os camaradas me bateram pra caraca sem deixar vestígios,
estava com dor em tudo que é lado e sem uma marquinha ou machucado, serviço
profissa, embora fosse de se esperar que não houvessem sido tão cuidadosos com
o meu broder, imaginava o pobre Tomate transformado num molho bolonhesa, e já
que a noite era uma criança, só me restou esperar feito corno pelos dois
próximos personagens daquela comédia de humor negro, agentes Faraco e Moura.
O policial federal Moura tinha cabelo de cantor de boys band e unhas
manicuradas, mas o que mesmerizava o meu olhar era o bem mais preocupante Rolex
dourado no pulso do Faraco, ambos mascavam chicletes e bebiam quantidades
industriais de energético, trataram os demais canas com o mais absoluto
desprezo e providenciaram o pior café da minha vida, capaz de lançar um
diabético em coma com meia golada, desde o primeiro momento deixaram evidente o
quanto cagavam pros meus contatos na grande mídia, Moura estava com o meu
celular na mão.
― Quem é Brenda?
― Minha... mina, quer dizer, estamos saindo, ela quer um lance mais, tipo
compromisso, sabe como são as mulheres...
― Bom, acho que vai ter que problemas com ela. Mas isso vai ser mais
tarde, por enquanto este celular, e o senhor, são os nossos únicos contatos com
o senhor Uzodima Iweala.
― Qual é a relação entre você e o americano? ― Faraco fazia a pergunta a
poucos milímetros do meu rosto, felizmente pra mim, usava o perfume Gió da Armani.
Contei toda a história pela milésima vez na noite, atropeladamente como é
do meu estilo, desejoso de agregar sinceridade a cada frase, nessas horas eu
sempre penso que a minha vida seria mais fácil se eu falasse como o José Miguel
Wisnik escreve.
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