O advento do
terrorismo islâmico e a última (mas não derradeira) grande crise econômica
mundial sacudiram de vez a bolha de tranqüilidade do mundo ocidental: batalhões
de experts, coortes de políticos conservadores e xenófobos de todos os calibres
emergiram das sombras para vociferar panfletos apocalípticos e anunciar sem
rodeios que as duramente conquistadas liberdades e direitos civis precisam ser
limitados de forma a lidar com as novas ameaças à segurança coletiva. Um
aplicativo capaz de identificar potenciais conspiradores ou indivíduos
procurados pelas autoridades de repente virou o Santo Graal da vigilância
filmada.
Neste quadro
de paranóia globalizada o projeto de Jaqueline ganhou importância, sendo alçado
ao nível top de prioridade. Ninguém ousa questionar os seus métodos. Não é que
se engane, está plenamente consciente de que o seu trabalho passou a ser
artificialmente valorizado e por isso mesmo acredita que não terá oportunidade
melhor para implementar seus objetivos profissionais. Bem como as taras
pessoais. Por exemplo, neste momento ela traça a rota de Paco a fim de verificar
se ele realmente vai direto do serviço pra casa como disse na mensagem lacônica
enviada há pouco. Algo fez o seu alarme interno soar.
É um homem de
hábitos, eles sempre tomam um café quando ele sai e ela entra no plantão da
companhia de bisbilhotice pública. Brincadeira de criança pra Jaque: digita seu
log in de acesso e faz uma busca nos registros dos semáforos inteligentes da
cidade com o número da placa do carro que conhece tão bem. Batata. Os dados
indicam que o veículo do amante não tomou nenhuma das autopistas possíveis com
destino a Los Jinetes (A-4 ou SE-40), ao contrário, surge a localização atual
na Calle Placentines. Consegue a imagem da rua em tempo real na tela, a tempo
de ver o Seat Ibiza parar em frente ao número 21. Azahar Bar & Copas.
― Filho da
puta, bem aqui ao lado! Aposto que é outra mulher, pro canalha não é suficiente
ter duas.
Ainda assim quer
ter plena certeza das suas suspeitas, resolve testar seu software nas câmeras
da Placentines: digitaliza uma foto de Paco e deixa a filmagem rodando. Tão
logo ele saia do bar o sistema vai disparar o alarme anunciando a identificação
do suspeito, e então ela vai descobrir se a suposta acompanhante é ou não a
esposa do calhorda. Sente uma pontada dolorosa no coração, o Azahar é um
pequeno bar turístico, fora do roteiro dos amigos e conhecidos dele. Levou-a lá
quando se descobriram apaixonados, justamente pela discrição e aconchego do
local.
Acostumou-se a
ser a outra, a ponta oculta do triângulo amoroso, mas ser corna de uma terceira
mulher era demais pra ela. Namorar um homem casado não lhe parecia ser mais do
que um incômodo conveniente, o tipo de relacionamento sem muita cobrança nem o
controle habitual do macho latino. Tipo da situação confortável para ambas as
partes. Mas acontece que o boçal vivia protestando seu grande amor por ela,
ameaçando separar-se a cada conversa pós-coito entre lençóis, vinho e cigarros.
Imbecil, cochambroso.
Pra se
distrair enquanto espera, realiza suas tarefas rotineiras verificando os controles
e os avisos habituais das máquinas. Àquela hora não há mais ninguém acordado no
décimo sétimo andar, até o guarda noturno deixou a ronda pra tirar um cochilo.
Sozinha como sempre, como tanto gosta. Há uma placidez quieta na cidadela de
computadores, telas e consoles de última geração à sua volta, uma ilha de
tranqüilidade alheia ao bulício dos que aproveitam a noite quente do sábado.
Somente os solitários sabem apreciar a beleza que o silêncio encapsula.
― Ahá, soam as
trombetas! Vamos ver o que nos reserva a noite... hmm, aproximar foco, aqui
está: ele saindo do bar e... acompanhado! Vamos ver quem é ela, não é a
esposa... uma loira aguada. Grande bufão, corno de merda!
Novamente ela
aciona os radares detectores de velocidade para lhe informarem o trajeto do
carro. É como um vôo de pirilampo: acende e apaga, acende e apaga, mas o rastro
de luz vai indicando o caminho. Por sorte há registro de imagem na rua onde param,
anota o endereço. O casal sobe um pequeno lance de escadas, abraçados,
desaparecendo no edifício residencial. Uma luz se acende no quinto andar,
depois se apaga novamente.
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