Carregaram os
pertences e as compras no confortável utilitário de Lucí e saíram cedo no
contrafluxo da quinta feira, teriam seu fim de semana prolongado numa agradável
propriedade situada nas fraldas da Serra de Cádiz. Elas calcularam que os dois
dias surrupiados ao trabalho seriam mais do que suficientes pra levar a cabo
seus intentos. Grafites gritavam a poesia multicor dos arredores sevilhanos,
paredes e ruas passavam inertes banhadas pela luz oblíqua da manhã. O dia se
anunciava esplêndido para uma escapadela rumo ao campo.
Pegaram a
Autopista del Sur quase completamente vazia e rodaram tranqüilos conversando
amenidades. Sentada no banco de trás, Jaque se viu comentando a última partida
dos rojiblancos, uma sova impiedosa do Real Madrid: quatro a zero, com direito
a show particular do craque Cristiano Ronaldo. Nas margens da rodovia
contemplavam a vegetação dos jarales, arbustos baixos e retorcidos como as
mirras espinhentas, e prados verdejantes onde cresciam o cardo, as centáureas e
os tufos de esparto. Na altura de Las Cabezas de San Juan saíram à esquerda, fugindo
assim do monitoramento dos radares rodoviários cruzando através da cidadezinha
para continuar pelo entroncamento de La Virgen de las Cabezas.
A estrada de
mão dupla, a pista única margeada por uma fileira de imponentes choupos, apenas
interrompida pela pitoresca seqüência de minúsculos povoados com suas casas de
pedra, galinhas e cachorros soltos, azinheiras, homens a cavalo ou em carroças,
e aldeãs carregando o luto eterno nas roupas escuras. Conforme se avizinhavam
da serra, sentiam no ar um misto dos aromas do pinus e do rosmaninho que cobria
os campos florindo-os do seu inconcebível tom magenta.
― Galo que não
canta, algo tem na garganta ― Lucí provocava o subitamente silencioso
convidado.
― O que as
palavras podem diante da beleza deste vosso país, minhas caras amigas?
― É verdade.
Nunca deixo de me emocionar com os nossos campesinos, é uma mistura de
resistência, coragem indômita e religiosidade fanática que fazem tremer os
ossos a qualquer um ― da janela, Jaque aproveitava o refresco do vento com ar
sonhador.
― E já que
sacaram um ditado, também tenho o meu: como sou do campo, aqui me descampo.
― Ah não,
Slobodan, de nós você não escapa ― Lucí olhou pelo retrovisor para encontrar o
olhar intenso da amiga.
― Hahaha. E
quem disse que eu quero escapar? Só louco pra perder uma oportunidade destas.
Finalmente
chegaram, uma propriedade isolada a meio caminho entre Prado del Rey e
Villamartin no sopé do parque nacional de Cádiz. Piscina, churrasqueira, um
pequeno pomar de oliveiras, e até mesmo uma casa de madeira na árvore para
crianças, o caminho de pedrisco ladeado por canteiros floridos do amarelo das
artemísias levava à casa. Estacionaram o carro na sombra de um magnífico roble
cujos ramos gigantescos se dobravam até o chão. Simplesmente perfeito: o lugar
era invisível da estrada, enclausurado dentro de um pequeno bosque de freixos e
castanheiras.
Instalaram-se
no mezanino, Jaque e Lucí dividiram o quarto. Radic aguardou-as descer
contemplando uma reprodução sobre a cornija da lareira esculpida em pedra. Lucí
resplandecia num vestido de cambraia leve com seus longos cabelos negros
cascateando pelos ombros e costas.
― Não falem,
por favor, já vi você num quadro, Lucía ― Radic arregalava os olhos muito azuis
em êxtase. ― Dona Aña qualquer coisa, de Ramon Casas.
― Acho que
lembro dessa pintura, sim. Não sabia que era admirador de arte ― Jaque
disfarçava, também comovida com a beleza quase displicente da amiga.
― Verdade,
estava observando esse Da Vinci sobre a lareira, até mesmo os esboços dele têm
a grandiosidade dos monumentos. Como, aliás, as damas que me acompanham: até num
invólucro casual, deslumbram.
― Hahaha, aceito
o piropo Radic, mas o talento que você vinha ocultando na verdade é o de
galanteador barato ― Lucí sorria, ainda mais sedutora.
― Em Da Vinci não se
distinguem rascunho e obra, porque a verdadeira realização não está na forma
definitiva, mas na série de aproximações para atingi-la. Cada esboço testemunha
uma extraordinária batalha com a linguagem, cada linha híspida e nodosa procura
a expressão mais rica, mais sutil e precisa ― o espião falava como para si
mesmo.