domingo, 20 de março de 2016

Red Star (5)




Às vezes as coisas saem dos trilhos e o mundo parece ter ficado de pernas soltas e pontas afiadas, e é então que podemos abandonar as vias habituais para experimentar caminhos novos e desusados porque tudo parece ter se tornado possível. Era assim que Jaque se sentia naquele primeiro dia quando deixou a casa de Lucía, de repente aquela moça passou a existir na sua vida, e mais de repente ainda, tornou-se amiga, aliada, e finalmente cúmplice num esquema mirabolante de caça a um predadoir sexual. Exatamente aquele que a marcara para sempre.
Tinha tudo pra dar errado. Mas as coisas foram caminhando rapidamente nas semanas subseqüentes, a identificação pelo programa de reconhecimento deu positivo, Slobodan Radic era mesmo o agente especial Kemper Boyd: 96% de certeza. Quem não entendia nada era Paco, a súbita aproximação entre as suas amantes parecia-lhe uma fulminante paixão feminina a empurrá-lo prum escanteio desonroso e mortificante. Talvez ficasse ainda mais alarmado se soubesse que Lucí agora fazia uma corte bastante descarada ao vizinho do terceiro andar, que por sua vez mostrava-e totalmente deslumbrado com a deslumbrante morena de sobrancelhas grossas, literalmente caída do céu.
Nisso no entanto Paco não se enganava de todo: as duas viviam noites febris de maquinações assassinas regadas a álcool, confidências descabeladas e pegação liberada. Como aconteceu depois do primeiro jantar romântico de Lucí com o falso comerciante sérvio. Assim como se nada, depois de 3 garrafas de Torre de Oña, ela lhe falou abertamente das suas preferências sexuais:
― Então, meu amigo, não sei como são essas coisas na sua terra natal, mas aqui costumamos ser diretas nesse particular. Não é que apenas me sinta atraída por homens mais velhos, como você reparou bem, mas tenho também outras fantasias menos... digamos, corriqueiras.
― Ora, ora, este país ensolarado e quente não cessa de me surpreender. Seria muito pedir que fosse ainda mais explícita quanto a essas preferências menos... corriqueiras?
― Não me obrigue a ser vulgar, os homens que deduzem me excitam mais. Vou lhe apresentar uma grande amiga minha, Jaqueline, se gostar dela, poderíamos passar um fim de semana numa casa de campo. Só nós três.
― Parece uma idéia encantadora, um presente do destino nesta minha vida de cigano. Por que não?
O plano seguia de vento em popa: as apresentações transcorreram num clima de descontração no apartamento de Lucí, o gringo estava que não se agüentava em si. Parecia uma criança ganhando presente de Natal em julho. Nem desconfiou quando Jaque lhe foi apresentada, afinal, em vinte anos ela não deixara apenas de ser uma menina para se tornar uma das mais respeitadas engenheiras de segurança da Espanha: ela também havia mudado de nome. Tinha sido a única maneira de continuar estudando, seu nome chegou a sair nos jornais da época.
Era uma justiça histórica, vendeta a ser saboreada na frieza dos pratos longamente aguardados: a menina abusada pelo monstro com imunidade diplomática seria resgatada pela mulher bem sucedida e autoconfiante de hoje. E tudo isto pelas mãos da namorada do ex amante, Lucí, o encontro favorável, a buena dicha lhe sorrindo como o gato de Alice nas curvas irônicas da vida. Também ela havia sido molestada por um tio, e enxergava nesta louca aventura em que se metiam irrevogavelmente a sua revanche contra um abuso tolerado por sua própria família.
Marcaram o fim de semana seguinte numa casa de campo em Villamartin, a 20 km de Sevilha. Lucí trabalhava com imóveis de luxo e conseguiria as chaves de uma propriedade vazia fora das câmeras de vigilância. O plano era ousado: seqüestrariam o canalha, drogavam a bebida dele e o matavam com uma overdose de heroína. O corpo elas jogariam numa represa do Parque Natural de Alcornocales amarrado a coletes de chumbo. Tomaram a precaução de desligar o GPS do carro e dos celulares. Na noite anterior à viagem Jaque teve um sonho.
Estava numa tourada noturna, mas a noite era incrivelmente clara iluminada por uma brilhante estrela vermelha bem próxima da lua. O animal dispara, um meteoro de meia tonelada de carne emergindo do touril, ele rodeia toda a arena como uma ratazana encurralada, bufa, raspa os cascos no chão. Então arremete na direção de um cavaleiro enterrando seus chifres até o crânio no flanco da égua, que galopa absurdamente picadeiro afora, escoiceando, deixando escorrer por entre as pernas uma massa de entranhas de cores abjetas, branco, rosa e cinza-carmim. A bexiga rebentada do animal agonizante lançava uma poça de urina sobre a areia ― tamanha era a tensão nos músculos das pernas e do baixo ventre, ela gozou.



Nenhum comentário: