Ressabiado,
Paco deixou as duas sozinhas já que a ironia de Jaqueline tinha fundo e forma
de verdade: o álibi dele em casa estava mesmo expirando. Evitou se despedir de
Lucía com um beijo dadas as circunstâncias. Tão logo ouviu o elevador sair do
andar, esta última quebrou o silêncio e o gelo tentando abreviar qualquer
conversa mais constrangedora entre conhecidas que se desconhecem.
― Segundo o
Paco me disse, você é uma mulher inteligente e pouco afeita a expansões
sentimentais. Por isso não acredite que vá me contar algo sobre vocês que ele
já não...
― Sossegue,
meu assunto não é esse ― Jaqueline interrompeu a dona da casa com um gesto e se
recompôs no sofá. ― O que realmente me interessa é saber sobre o Americano.
― Agora sim,
você está me falando uma novidade, que história é essa de americano?
― Olha Lucía,
sou muito grata por ter me acolhido em sua casa e tudo mais, realmente não vim aqui pra te
encontrar, não era do meu interesse conhecê-la pessoalmente, apenas queria
flagrar o nosso, digamos, amigo em comum e pôr fim a um caso amoroso que já só
respirava mesmo por aparelhos. Não tive uma hipoglicemia, nem uma enorme
comoção ao constatar que o namorado me traía, o que aconteceu foi que na
portaria hoje de manhã, Paco, coincidentemente, saiu junto do seu prédio com um
homem do meu passado.
― O tal
americano?... ― Lucía começava a se interessar verdadeiramente por aquela
história.
― Exato. Sou
muito boa pra lembrar de rostos, Paco deve ter lhe contado que inclusive estou
desenvolvendo um software de segurança especializado nisso. Mas mesmo que não
fosse, não tenho nenhuma dúvida sobre a identidade do homem que vi hoje cedo,
nunca vou esquecê-lo enquanto estiver viva.
― Caramba,
Jaque, desculpe chamá-la assim, é a maneira como o Paco sempre se referiu a
você. Não sei se era essa a intenção, mas você está me deixando assustada.
― Pois é, acho
que não existe uma maneira sutil de te contar esta história: esse homem me
abusou sexualmente quando eu era criança. Sou filha de pai militar, como
conseqüência disso, nossa família viveu uma vida errante ao sabor da carreira
dele, minha mãe era professora primária, de modo que eu passei a infância sendo
mudada de cidade e de casa, mas sempre estudando onde ela dava aulas. Vinte e
cinco anos atrás, vivíamos na vila militar de La Línea de la Concepción, que como
você sabe é vizinha ao território britânico de Gibraltar, onde há uma base da
OTAN. Naquela época estourou a primeira Guerra do Golfo, quando Bush pai
começou as incursões americanas no Iraque. A região ficou cheia de tropas e a
tensão era quase palpável no ar; esse sujeito, vamos dar-lhe nome: Thomas
Kemper Boyd, era um agente secreto da CIA, que por algum motivo ia e vinha da
base da OTAN para a base militar espanhola em algum tipo de missão escusa,
suponho. Meu pai travou intenso contato com o canalha porque fazia parte do
alto comando de logística do exército espanhol, algo de que os americanos
dependiam criticamente naquele momento. E foi assim, Lucía, que Mr. Boyd teve
acesso a mim.
— Lucí,
prefiro que me chame de Lucí, já que você me deixou tratá-la por Jaque. Se acalme
um pouco, imagino o quanto é difícil... você aceita um chá?
— Obrigada,
estou bem agora. Mas quando o vi saindo do seu prédio, de verdade eu fraquejei.
Fiz anos de terapia pra superar o trauma, segui em frente, mas é diferente dar
de cara com a pessoa que marcou sua vida com ferro em brasa.
— Jaque, você...
conseguiu falar disso com os seus pais na época?
— Sim, chegaram
a abrir um inquérito, posteriormente arquivado por falta de provas. É, assim
eram as coisas naquela época. Depois meu pai foi transferido pra abafar o caso
e a coisa virou apenas um drama familiar que tivemos de remoer em silêncio.
—
Inacreditável! Aposto que os ianques molharam a mão de uma meia dúzia dos
nossos valorosos generais, e vida que segue.
— Meus pais
nunca foram mais os mesmos, se aposentaram cedo, hoje vivem reclusos na
província e se recusam até mesmo a votar no conselho da comuna. Quis entrar pro
serviço secreto espanhol, mas então ainda não aceitavam mulheres, trabalhar com
vigilância foi a maneira que encontrei de ir atrás desse monstro. Na verdade,
consegui saber muito pouco dele nesses anos todos, como pode imaginar essas
pessoas são bastante protegidas pelos governos aliados.
— Como ele é
fisicamente?
— Alto, corpulento,
cabelo curto, loiro pra grisalho, por volta dos cinqüenta... levemente
estrábico. Lucí, sinceramente, não sei se deveria envolver você nisso.
— Filho de uma
reputíssima mãe! O senhor Radic, Jesus, será possível? Bate com a descrição de
um morador do terceiro, Slobodan Radic, um homem simpático, fala um bom espanhol
com forte sotaque, se apresenta como sérvio representante comercial de empresas
de tecnologia. Jaque, e se ele for mesmo o tal Mr. Boyd, o que você quer dele?
— Vingança.
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