Corri para a saída de serviço,
abri a porta e tranquei-a por fora. Antes de desabalar pelas escadarias ainda
berrei uma última advertência para que ninguém abrisse a casa ao intruso. Parei
diante da porta de fundos dos outros três vizinhos (o bloco A tem quatro por
andar), deveria avisá-los, ou só faria causar um pânico desnecessário? Além do
mais, quem quer que estivesse tentando forçar a entrada da minha casa (ele
parecia bem convincente e decidido), já podia estar em qualquer outro
apartamento tentando a sorte com algum morador menos cuidadoso. Bastava
escolher nos botões do elevador, alguém acabaria cedendo, alguma porta estaria
destrancada, digamos que uma criança fosse atender à campainha. Pensei que o
mais simples e correto a fazer seria mesmo descer na portaria e, de lá, avisar
os outros moradores e chamar a polícia. O problema é que me faltava a coragem de
tomar o elevador de serviço, temia dar de cara com o invasor de arma em punho. Realmente
o cagaço não deve ser o melhor dos conselheiros, escolhi a alternativa mais descabelada
possível: saí batendo de porta em porta nos andares que percorria urrando a
plenos pulmões.
―
Tranquem as portas! Tem um estranho batendo, não deixem ele entrar!
Daria pra ter causado uma boa
meia dúzia de enfartes com o fuá armado, meti o louco geral, descia os lances
de escada pulando de quatro em quatro degraus, parava nos patamares, tomava
fôlego, e esmurrava cada porta que via pela frente me esgoelando como um
bezerro desmamado. Ouvia conversas, discussões em altos brados, som de
televisores ligados na novela, barulho de panelas e pratos, música, mas,
curiosamente, a minha algazarra não mudava a rotina das residências aferradas
na sua placidez cotidiana ― ninguém aparecia para saber do que se tratava,
fosse por medo ou distração, meus vizinhos seguiam suas vidinhas em aparente
normalidade. Não me dei por vencido, entretanto, continuei na carreira louca
pelas escadarias afora, tropeçando em sacos de lixo, tênis velhos, vassouras e
uma infinidade de cacarecos largados nos corredores. As pessoas acreditam
realmente que é obrigação dos funcionários recolher tudo aquilo que já não lhes
convém nessa terra sem lei chamada “área de serviço”? Anotei mentalmente um
aparte que faria na próxima reunião de condomínio (talvez até mesmo fizesse
lobby para incluir o assunto na pauta), chegava a ser acintoso semelhante
descaso. É assim, em pequenos degraus de desídias corriqueiras, que se constrói
uma sociedade bagunçada como a nossa, a tal piada: se organizar direito, sobra caos
pra todo mundo. No oitavo andar encontrei a primeira vivalma, uma senhora de
idade com lenço na cabeça levando o lixo da cozinha para fora, parou, muito espantada
de me encontrar ali, ouviu paciente a minha arenga exaltada, e só então
informou que estava sem o aparelho de audição e não entendia nada do que eu
dizia. Virou-me as costas, entrou, e deu duas voltas na chave. Fui em frente,
descendo e gritando, batendo e berrando, o estranho que avisa de outro
estranho, até que desisti e apenas descia freneticamente vendo o desfile de
portas, vitrôs e escadas sem fim, e, de repente, a lembrança (eu já vi, já vivi
isso!, esta situação já tinha acontecido, era um replay!, um retorno de algo
que conhecia, mas sem a informação de onde nem quando), sentia-me dentro da parábola
do viajante chegado no meio da noite a um hotel com infinitos quartos, o
gerente diz ao viajante que havia infinitos inquilinos ocupando cada um dos
quartos e não haveria lugar para ele, ao que o viajante responde: sem
problemas, coloque-me no quarto 1 e desloque o hóspede para o quarto 2, repita
o mesmo com todos os outros hóspedes, havendo infinitos quartos todos terão
acomodação. Infinito mais um. Assim pensava ao vencer os últimos lances da
descida rumo ao térreo, detive o passo a ponto de atropelar um gato, arquejava
do esforço e da raiva, procurei ouvir se me esperava alguma emboscada no final
do trajeto. O invasor, ou invasores, (bem poderia ser uma quadrilha fazendo um
arrastão no condomínio), talvez houvessem antecipado meus movimentos. Arrisquei
uma investida abrupta no saguão da área de serviço, àquela hora vazio e sem
luz, contornei a coluna do elevador para escalar o muro de elemento vazado que
dava pro jardim, por onde pude me esgueirar entre os canteiros que ladeavam o
corredor de comunicação dos blocos de apartamentos. Rodeei uma longa volta para
alcançar discretamente a guarita da portaria sem me expor na entrada principal,
o porteiro quase desmaiou quando irrompi feito um pé de vento na pequena
construção de alvenaria.