quarta-feira, 31 de agosto de 2016

o intruso (2)



Corri para a saída de serviço, abri a porta e tranquei-a por fora. Antes de desabalar pelas escadarias ainda berrei uma última advertência para que ninguém abrisse a casa ao intruso. Parei diante da porta de fundos dos outros três vizinhos (o bloco A tem quatro por andar), deveria avisá-los, ou só faria causar um pânico desnecessário? Além do mais, quem quer que estivesse tentando forçar a entrada da minha casa (ele parecia bem convincente e decidido), já podia estar em qualquer outro apartamento tentando a sorte com algum morador menos cuidadoso. Bastava escolher nos botões do elevador, alguém acabaria cedendo, alguma porta estaria destrancada, digamos que uma criança fosse atender à campainha. Pensei que o mais simples e correto a fazer seria mesmo descer na portaria e, de lá, avisar os outros moradores e chamar a polícia. O problema é que me faltava a coragem de tomar o elevador de serviço, temia dar de cara com o invasor de arma em punho. Realmente o cagaço não deve ser o melhor dos conselheiros, escolhi a alternativa mais descabelada possível: saí batendo de porta em porta nos andares que percorria urrando a plenos pulmões.

            ― Tranquem as portas! Tem um estranho batendo, não deixem ele entrar!

Daria pra ter causado uma boa meia dúzia de enfartes com o fuá armado, meti o louco geral, descia os lances de escada pulando de quatro em quatro degraus, parava nos patamares, tomava fôlego, e esmurrava cada porta que via pela frente me esgoelando como um bezerro desmamado. Ouvia conversas, discussões em altos brados, som de televisores ligados na novela, barulho de panelas e pratos, música, mas, curiosamente, a minha algazarra não mudava a rotina das residências aferradas na sua placidez cotidiana ― ninguém aparecia para saber do que se tratava, fosse por medo ou distração, meus vizinhos seguiam suas vidinhas em aparente normalidade. Não me dei por vencido, entretanto, continuei na carreira louca pelas escadarias afora, tropeçando em sacos de lixo, tênis velhos, vassouras e uma infinidade de cacarecos largados nos corredores. As pessoas acreditam realmente que é obrigação dos funcionários recolher tudo aquilo que já não lhes convém nessa terra sem lei chamada “área de serviço”? Anotei mentalmente um aparte que faria na próxima reunião de condomínio (talvez até mesmo fizesse lobby para incluir o assunto na pauta), chegava a ser acintoso semelhante descaso. É assim, em pequenos degraus de desídias corriqueiras, que se constrói uma sociedade bagunçada como a nossa, a tal piada: se organizar direito, sobra caos pra todo mundo. No oitavo andar encontrei a primeira vivalma, uma senhora de idade com lenço na cabeça levando o lixo da cozinha para fora, parou, muito espantada de me encontrar ali, ouviu paciente a minha arenga exaltada, e só então informou que estava sem o aparelho de audição e não entendia nada do que eu dizia. Virou-me as costas, entrou, e deu duas voltas na chave. Fui em frente, descendo e gritando, batendo e berrando, o estranho que avisa de outro estranho, até que desisti e apenas descia freneticamente vendo o desfile de portas, vitrôs e escadas sem fim, e, de repente, a lembrança (eu já vi, já vivi isso!, esta situação já tinha acontecido, era um replay!, um retorno de algo que conhecia, mas sem a informação de onde nem quando), sentia-me dentro da parábola do viajante chegado no meio da noite a um hotel com infinitos quartos, o gerente diz ao viajante que havia infinitos inquilinos ocupando cada um dos quartos e não haveria lugar para ele, ao que o viajante responde: sem problemas, coloque-me no quarto 1 e desloque o hóspede para o quarto 2, repita o mesmo com todos os outros hóspedes, havendo infinitos quartos todos terão acomodação. Infinito mais um. Assim pensava ao vencer os últimos lances da descida rumo ao térreo, detive o passo a ponto de atropelar um gato, arquejava do esforço e da raiva, procurei ouvir se me esperava alguma emboscada no final do trajeto. O invasor, ou invasores, (bem poderia ser uma quadrilha fazendo um arrastão no condomínio), talvez houvessem antecipado meus movimentos. Arrisquei uma investida abrupta no saguão da área de serviço, àquela hora vazio e sem luz, contornei a coluna do elevador para escalar o muro de elemento vazado que dava pro jardim, por onde pude me esgueirar entre os canteiros que ladeavam o corredor de comunicação dos blocos de apartamentos. Rodeei uma longa volta para alcançar discretamente a guarita da portaria sem me expor na entrada principal, o porteiro quase desmaiou quando irrompi feito um pé de vento na pequena construção de alvenaria.



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