quarta-feira, 24 de agosto de 2016

o intruso (1)




É sempre a mesma história. Parece um caso daquela famosa Lei de Murphy, justamente quando você está ocupado com alguma tarefa que exige concentração absoluta, nessa hora toca a campainha e ninguém se prontifica a levantar o traseiro e fazer o imenso favor de ir lá abrir a porta. Estava no meu quarto estudando certos pontos particularmente escorregadios de lógica matemática, os exames da pós-graduação se aproximavam e achei melhor manter a matéria em dia. Era uma variação usada por Gödel para tratar do paradoxo de Russell: imaginemos uma cidade com apenas um barbeiro do sexo masculino, nesta cidade todos os homens, ou fazem a própria barba, ou são barbeados pelo barbeiro, pois bem, tudo corre na mais tranqüila ordem até considerarmos a peculiar situação do barbeiro em si, que tanto faz a própria a barba, como a tem feita pelo barbeiro da cidade. Na vida real nada disto é problemático, o barbeiro passa a lâmina e vida que segue, mas no mundo da lógica temos duas proposições inválidas: a) ao barbear-se, então o barbeiro (ele mesmo) não deve barbear a si mesmo, e, b), se o barbeiro não se barbeia a si mesmo, então ele (o barbeiro) deve barbear a si mesmo. Se já é difícil se embrenhar no rigor desta linguagem tão abstrata, ficava impossível com a campainha soando insistente e insolentemente desatendida apesar da casa estar cheia àquela hora da noite.

            ― Alguém, por favor, pode abrir essa porta?!

Sem resposta. Levantei da cama onde havia afundado entre livros-texto e xeroxes num mau humor do cão. Arrastei-me pelo corredor de paredes decoradas com quadros de bordado geométrico, virei à esquerda na direção da sala de móveis embutidos em jacarandá escuro antes de chegar à porta do elevador social. Não tinha a menor pressa do mundo, só comecei a me inquietar quando percebi a maçaneta de bola girando devagar, como se alguém estivesse tentando se aproveitar da distração dos donos para introduzir-se sorrateiramente na casa. Quem poderia ser? Alguém íntimo demais da família para não precisar esperar que lhe abrissem a porta, ou um estranho com más intenções que experimenta a porta de um apartamento como um ladrão de carros verifica se algum motorista distraído lhe facilitou o “serviço” deixando a porta do carro destrancada?

            ― Quem é?
― É uma encomenda.
― A esta hora? Por que não deixou na portaria do prédio?
― Senhor, preciso que assine o recibo de entrega.
― Não lembro de ter ouvido o interfone tocar avisando que tinha gente subindo aqui.
― Por favor, abra a porta, receba o pacote, e assine os papéis. É só isso.
― Não quero saber, deixe a encomenda aí que eu assino os papéis e amanhã você pega com o porteiro.

O meu interlocutor se calou, irritado, suponho. Fiquei ali, a respiração suspensa, o gesto detido em frente à porta, sem saber exatamente como deveria proceder numa situação daquelas, mas sentia uma ponta de orgulho em ter resistido com tanta determinação às demandas do desconhecido entrão. Para minha surpresa e susto, a porta começou a empenar para dentro ― o cara estava forçando a entrada na minha casa! Passei o trinco e o ferrolho na porta apressadamente, e comecei a chamar o pessoal e avisá-los da tentativa de invasão. Ninguém se dignou a vir à sala para me ouvir, recebi respostas de apoio da cozinha, do escritório, dos quartos, mas nada de darem as caras e tomar consciência da gravidade do evento. Corri para a saída de serviço, abri a porta e tranquei por fora. Antes de desabalar pelas escadarias ainda berrei através da porta uma última vez que ninguém abrisse a porta ao intruso.



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