É sempre a mesma história. Parece
um caso daquela famosa Lei de Murphy, justamente quando você está ocupado com
alguma tarefa que exige concentração absoluta, nessa hora toca a campainha e
ninguém se prontifica a levantar o traseiro e fazer o imenso favor de ir lá
abrir a porta. Estava no meu quarto estudando certos pontos particularmente
escorregadios de lógica matemática, os exames da pós-graduação se aproximavam e
achei melhor manter a matéria em
dia. Era uma variação usada por Gödel para tratar do paradoxo
de Russell: imaginemos uma cidade com apenas um barbeiro do sexo masculino,
nesta cidade todos os homens, ou fazem a própria barba, ou são barbeados pelo
barbeiro, pois bem, tudo corre na mais tranqüila ordem até considerarmos a
peculiar situação do barbeiro em si, que tanto faz a própria a barba, como a
tem feita pelo barbeiro da cidade. Na vida real nada disto é problemático, o
barbeiro passa a lâmina e vida que segue, mas no mundo da lógica temos duas
proposições inválidas: a) ao barbear-se, então o barbeiro (ele mesmo) não deve
barbear a si mesmo, e, b), se o barbeiro não se barbeia a si mesmo, então ele
(o barbeiro) deve barbear a si mesmo. Se já é difícil se embrenhar no rigor
desta linguagem tão abstrata, ficava impossível com a campainha soando
insistente e insolentemente desatendida apesar da casa estar cheia àquela hora
da noite.
―
Alguém, por favor, pode abrir essa porta?!
Sem resposta. Levantei da cama
onde havia afundado entre livros-texto e xeroxes num mau humor do cão.
Arrastei-me pelo corredor de paredes decoradas com quadros de bordado
geométrico, virei à esquerda na direção da sala de móveis embutidos em
jacarandá escuro antes de chegar à porta do elevador social. Não tinha a menor
pressa do mundo, só comecei a me inquietar quando percebi a maçaneta de bola
girando devagar, como se alguém estivesse tentando se aproveitar da distração
dos donos para introduzir-se sorrateiramente na casa. Quem poderia ser? Alguém
íntimo demais da família para não precisar esperar que lhe abrissem a porta, ou
um estranho com más intenções que experimenta a porta de um apartamento como um
ladrão de carros verifica se algum motorista distraído lhe facilitou o
“serviço” deixando a porta do carro destrancada?
―
Quem é?
― É uma
encomenda.
― A esta hora?
Por que não deixou na portaria do prédio?
― Senhor,
preciso que assine o recibo de entrega.
― Não lembro
de ter ouvido o interfone tocar avisando que tinha gente subindo aqui.
― Por favor,
abra a porta, receba o pacote, e assine os papéis. É só isso.
― Não quero
saber, deixe a encomenda aí que eu assino os papéis e amanhã você pega com o
porteiro.
O meu interlocutor se calou,
irritado, suponho. Fiquei ali, a respiração suspensa, o gesto detido em frente
à porta, sem saber exatamente como deveria proceder numa situação daquelas, mas
sentia uma ponta de orgulho em ter resistido com tanta determinação às demandas
do desconhecido entrão. Para minha surpresa e susto, a porta começou a empenar
para dentro ― o cara estava forçando a entrada na minha casa! Passei o trinco e
o ferrolho na porta apressadamente, e comecei a chamar o pessoal e avisá-los da
tentativa de invasão. Ninguém se dignou a vir à sala para me ouvir, recebi
respostas de apoio da cozinha, do escritório, dos quartos, mas nada de darem as
caras e tomar consciência da gravidade do evento. Corri para a saída de
serviço, abri a porta e tranquei por fora. Antes de desabalar pelas escadarias
ainda berrei através da porta uma última vez que ninguém abrisse a porta ao
intruso.
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