domingo, 14 de agosto de 2016

A Corrente (5)



5. Mansueto

― Mano, desacreditei desse bagulho de entrar nas idéias dos outros, de se teletransportar pra uma vida... como a sua. Quer dizer, cê tá ligado?, não é desfazendo, falei de boas.
― Olha menina, já vivi o suficiente pra não me surpreender se o postes resolverem fazer xixi nos cachorros. Embora, pra lhe dizer a verdade, também estranhei quando tudo isso começou. Que é que eu sei sobre esses fenômenos? Pouco. Andei fazendo umas pesquisas e não cheguei a nenhuma conclusão definitiva, a ciência não anda no mesmo passo da nossa curiosidade. O certo é que tudo começou depois que operei o cérebro.
― Caracas, o senhor abriu a cabeça?!
― Abriram a minha cabeça, pra ser mais exato. Tenho 62 anos, sofro do mal de Parkinson há 5, faz um ano que implantei um marca passo cerebral. O nome chique é deep brain stimulation, ou DBS: são 2 eletrodos instalados bem no meio dos miolos, numa região chamada tálamo, que deve ser pouco maior que um ovo de codorna. Vê este fiozinho subindo da minha clavícula? Aqui fica o neuroestimulador, uma bateria que dispara pulsos para os meus neurônios não esquecerem de acionar os músculos corretamente.
― Que da hora. Então foi isso que fez você virar um X-man com poderes de telepatia?
― Essa é uma maneira de ver as coisas. Pra falar a verdade, não consigo pensar em outra causa para a minha súbita transformação numa espécie de médium que, em vez de receber espíritos, tem acesso aos pensamentos e sentimentos de pessoas reais, aliás, pessoas com problemas bem reais, como você. Somos um grupo de 5 pessoas capazes de captar essa freqüência, ou seja lá o que isso for, até onde sei, moramos num raio de 500 km uns dos outros, foi então que me veio essa idéia de mandar mensagens em forma de corrente pra ver se neste pequeno círculo de “amigos virtuais” consigo o que nunca consegui fazer na vida: uma coisa certa.
― E cê diz isso pra mim? Viu a palhaçada lá no cemitério? Ninguém respeita a dor dos outros, eu devia era ter mandado bala naquela bruxa que só fez trazer tiriça pro meu lado. Mas daí apareceu aquele soldado e me convenceu...
― E isso, por si só, já não é um milagre, uma pessoa te ajudando a troco de nada? Digamos que você tivesse matado a avó do seu falecido filho, e daí?, daí que você acabava de se desgraçar. Sofia, me escute bem, tenho idade pra ser seu avô, mas não passei do jardim de infância na escola da vida: sou um especialista em pôr tudo a perder. Só que, ao contrário de você, não tenho a quem culpar: eu atravessei a rua pra escorregar na casca de banana da outra calçada. Gostava de fotografia, mas me tornei advogado, amava Jaqueline, mas casei com Roberta porque estava mais fácil, e assim fui avançando rumo ao sucesso e às conquistas, sempre na maciota, seguindo no vai da valsa. Sempre procurei evitar a dor e escolher a maior vantagem, acabou que, de tanto fugir do sofrimento, deixei escapar o amor, e de tanto levar vantagem, prejudiquei a todos que estavam à minha volta. Quando o Parkinson se manifestou anos atrás, entrei num esquema de corrupção pra pular a fila dos implantes de marca-passo, que é que eu ganhei?, o aparelho não melhorou em nada os meus tremores, e o médico que me operou hoje tá com o nome no jornal. Só fiz cagadas.
― Sabe o que é enterrar um filho, Mansueto?
― Não faço e nem quero fazer idéia, acho que deve ser a pior coisa do mundo.
― Então, eu me liguei que tem uma nóia que não sai da sua cabeça: também tá se vendo sem ter pra onde se virar, sozinhão no meio da rua, também tá pensando em chutar tudo pro alto, saltar do trem em movimento. Fiquem aí vocês, que eu fui! Né não?
― Sem tirar nem por. Certíssima.
― E aí, nessa brincadeirinha que você inventou, pelo que entendi, agora é minha vez de te dizer: “Deixa disso, tente outra vez, levanta, sacode a poeira e dá a volta por cima”, e todas essas merdas que se falam nessas horas. Mas, e se eu não tiver afins de jogar na tua cartilha? E se eu te disser que pra mim moiou grandão, a bagaça perdeu o sentido, que pra mim deu?
― Bom, nesse caso eu te direi que este coió que perdeu as pessoas mais importantes da vida e só se ligou tarde demais, o retardado que jogou fora a própria vida, pode finalmente lhe ter caído a ficha, sacado alguma coisa. E essa alguma coisa tem muito a ver com você e essas pessoas que estamos conectados. Essa nova condição de telepatia, empatia, mediunidade, ou disfunção cerebral que seja, me permitiu entrar na pele, calçar o sapato dos outros, sentir o que eles sentem, entender o que nunca tinha entendido. Claro, até uma moeda de ouro tem 2 lados: a parte ruim de conhecer os outros por dentro é que junto descobrimos o pior que estava escondido em nós mesmos. Por outro lado, descobri que não existe campeonato da dor: o sofrimento não tem régua.
― Mano, cê não tá entendendo, eu tô feito bicho solto, não tenho porta onde bater, não tem um teto que eu possa dormir hoje, dá pra você se ligar no tamanho da encrenca? Se pá, vou ter que voltar a fazer programa pra não morrer de fome, o que eu jurei que nunca mais faria.
― Ah, mas não vai mesmo. Escuta, sou um homem razoavelmente bem de vida, você vai dormir numa casa minha que tá desalugada. Vou te ajudar como se fosse minha filha, posso fazer por você o que não fiz pelos filhos de sangue: cuidar apenas.




Nenhum comentário: