sábado, 1 de outubro de 2016

Afterlights (3)




A sala que ele chamou de acervo era uma antiga lavanderia adaptada na extremidade oeste do porão, que, na verdade, consistia no piso térreo da casa. No instante em que a porta se abriu, senti o cheiro de tecido mofado, ou de plantas murchas, enfim, o cheiro que as coisas exalam quando apodrecem. Era um espaço amplo, mas sujo e muito bagunçado. Objetos os mais diversos (talvez as peças da coleção?) estavam espalhados aqui e ali, sobre armários bambos e sem porta, largados nas cômodas e mesas, dispostos desordenadamente. Nada parecia estar no lugar certo.
Mas o que estava me incomodando não era a situação caótica da sala, era outra coisa. Demorei algum tempo para compreender o quê.
Andamos até o centro da sala. Era preciso prestar atenção a cada passo para não esbarrar em nada. Eu não queria nem imaginar como o sisudo senhor Ogawa esbravejaria se por acaso derrubasse ou quebrasse alguma coisa. O chão tinha o design moderno de muitos anos atrás, com ladrilhos hidráulicos em padrão mourisco sobre o cimento queimado. Graças às janelas estreitas no alto das paredes, pelas quais se via o céu e as plantas do jardim, a iluminação era boa, apesar de estarmos ligeiramente abaixo do nível do solo. Havia varais pendurados no teto, ferros de passar e antigas máquinas de torcer roupa caídas pela sala, vestígios do tempo em que ali funcionava uma lavanderia de verdade.
As salas de acervo, de qualquer natureza, costumam ser ambientes de aconchego familiar para mim, sempre gostei de passar o tempo encarando arquivos, fechado nesses claustros absolutamente silenciosos onde os visitantes não podem entrar. Mas aquela era diferente de qualquer sala de acervo que eu conhecesse. Era como se cada objeto se impusesse sem reservas, segundo seus próprios caprichos, criando uma dissonância insuportável. Mesmo em depósitos muito desorganizados sempre paira no ar um senso de solidariedade entre todas as peças reunidas por um mesmo museu. Mas ali não havia nenhum vínculo, nenhuma união, aqueles itens disparatados não tinham consideração suficiente nem para voltar o olhar para seus companheiros.
Isso me deixava aflito.
Um carretel, um dente de ouro, luvas, um pincel, botas de alpinismo, um batedor de ovos, gesso ortopédico, novelos de lã, um berço... Experimentei olhar com cuidado para cada uma das coisas próximas a mim, mas não adiantou. Só fiquei mais desorientado.
― São recordações dos conhecidos ― disse ele ―, dos meus conhecidos, uma peça de cada pessoa ou bicho de estimação que passou pela minha vida. Foi a maneira que encontrei de não perder, não me separar de ninguém. Como vivi muito, a maioria deles já morreu.
Sua voz ecoou estentórea e clara, apesar do cômodo se encontrar atulhado. Nesse momento finalmente percebi o motivo do meu desconforto. Ogawa-san usava uma boina enterrada quase à altura das sobrancelhas. Por entre o cabelo ralo e branco que ainda lhe restava, espiavam duas orelhas minúsculas, pequenas demais mesmo levando-se em conta a sua baixa estatura. Eram como duas rolhas secas carcomidas presas às laterais da cabeça. Tinham perdido completamente a forma de orelhas, eram apenas cicatrizes ao redor do buraco dos ouvidos.
― Nossa, são muitas... ― comentei hesitante, tentando desviar a atenção das orelhas.
― Comecei a reunir objetos pessoais quando fiz onze anos. Essa coleção tem uma história longa demais pra ser narrada. Mas vai ficar incompleta.
― E por quê?
― Não vou poder guardar nada de você.
À minha volta, naquele porão coberto de pó e teias de aranha, estava o resumo dos encontros e desencontros que era também o resumo da trajetória afetiva daquele homem. No dia em que completou onze anos, seu cachorro Koto morreu, e ele descobriu que também morreria. A insólita coleção testemunhava a aceitação e a revolta de uma criança contra esse fato irremediável de toda matéria que se torna viva. Talvez não tivesse sido fácil carregar muitas daquelas tralhas, principalmente para uma criança, mas, mesmo assim, ele conseguiu fazê-lo por muitas décadas. Contou-me que não lhe interessavam os souvenires banais, mas as coisas que guardassem, da forma mais vívida e fiel possível, a prova de que aqueles corpos realmente existiram. Algo sem o que os anos acumulados ao longo da vida desmoronariam desde a base, algo que pudesse impedir a morte e o tempo de completarem sua sentença.
Vitória e derrota, permanência e perda. Não, não eram lembranças sentimentais, não tinha nada a ver com isso.



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