Enquanto
caminha pelos corredores atafulhados de gente da estação Sé na interligação
trem-metrô ― um caminho que mal escolhe, apenas se deixa levar pelo fluxo ―,
tem a súbita sensação de que nada daquilo faz o menor sentido. Tudo parecia com
mais um dia normal de serviço: acordar, tomar café, pegar o lotação na Cidade
Ademar, depois o trem em Jurubatuba, 2 conexões de metrô, descer na estação São
Bento, andar 3 quadras a pé, entrar no edifício Cristiania, trocar de roupa no
almoxarifado, e assumir seu posto de trabalho. De repente, no meio da rua
Varnhagen, não conseguiu seguir em frente. Em vez disso, parou numa lanchonete e
pediu emprestada uma caneta e sacou papel do porta-guardanapos.
Muitas
vezes essa idéia havia aflorado seus pensamentos, mas nunca com tamanha
limpidez e urgência. Experimentou diversas versões rascunhadas até escolher a
mensagem mais simples para explicar a sua decisão daquela manhã. Afixou o papel
no quadro de avisos ao lado do elevador e deixou o emprego de ascensorista que
ocupou por tantos anos sem atrasos nem licenças médicas. Seus colegas mal
podiam acreditar no recado breve com o qual se despedia definitivamente: “Não
posso continuar no mesmo lugar. Deixei o uniforme dentro do armário. Tá
destrancado. Adeus.” E assinava.
Andou
pelas ruas do centro velho sem rumo durante horas, cada esquina, cada fachada,
as lojas, bancos, até mesmo os vendedores ambulantes, lhe apareciam de uma
forma nova, transformada pela quebra repentina do hábito. Como fora possível
não ter reparado nas pequenas maravilhas decrépitas que o cercavam diariamente
sem pedir afago ou atenção? Por que nunca se dera ao trabalho de assistir a uma
missa cantada no mosteiro? Ou mesmo uma parada breve no Largo do Café? Concluiu
algo mortificado que andara por aquelas ruas estreitas e sem carros de olhos
baixos, deixara de reparar nos becos de geometria irregular, no pavimento
enigmático, distraído de alguma verdade agora revelada, fulgurante e sem álibis.
Era
como se todas as coisas falassem com ele. O toque do celular arrancou-o daquele
devaneio que, entretanto, tinha muito de um despertar.
―
Fala Josias.
― Rapaz, que
bicho te mordeu? Endoidou de vez, foi?
― Nada, não. Só
cansei da porra toda.
― Ah, cansou
da porra toda?! Esqueceu que tu tá quase pra aposentar? Deixa de besteira e vem
pra cá.
― Vou não. Tô
de saco cheio, isso não é vida.
― Que foi que
te deu, homem de Deus? Vem já que eu peguei teu lugar, e dei uma desculpa pro
encarregado. Arranquei o bilhete maluco que tu deixou lá, só uns dois ou
três...
― Dá mais não,
Josias. Sabe quando você tá dormindo no meio da noite, e de repente a geladeira
pára de fazer barulho? Então, é como isso: nessa hora o que te desperta não é o
barulho, mas o silêncio que fica.
― ...
― Você tá me
ouvindo?
― Virgem
Santíssima, o homem endoidou foi de pedra mesmo! Moço, tu deu pra beber logo de
manhazinha, é?
― Bebi nada,
não. Tô mais são que nunca. Escuta, você podia me fazer um último favor?
― Último
favor? Homem, não me diga que vai...
― Assossegue
que não vou fazer bobagem nenhuma. Sabe aquele chapeuzinho que caiu da fachada?
―
Chapeuzinho?Barulho de geladeira? Você não tem mais idade pra fumar erva
danada, meu irmão.
― Então, é o
chapeuzinho do “A”, do primeiro “A”. O verdadeiro nome do edifício é
Cristiânia, o chapéu caiu faz um tempo e nunca consegui botar de novo. Você
faria isso pra mim?
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