quarta-feira, 26 de outubro de 2016

Cristiania (2)



            Pensou em como seria bom mudar pro centro da cidade. E então um intenso cansaço lhe desceu pelos órgãos do corpo e da alma, talvez não soubesse viver junto aos prédios descascados, andar por ruas onde o descaso varreu a mentira das cores, sentir no fim de tarde raiva ou desejo sexual misturados à buzina dos carros e aos gritos dos loucos e dos camelôs, passar fome e náusea com os churrasquinhos gregos, olhar as sacadas com varais improvisados, assistir aos truques dos saltimbancos nas esquinas, ouvir os autofalantes das liquidações, espiar através de janelas sem cortinas a beleza de corpos nus, o desterro de corpos vestidos. E depois ainda relembrar tudo isso diante do café coado e do pão com manteiga na chapa.
            Quase sem se dar conta, estava em frente à Pinacoteca. Folheou a carteira e constatou que não tinha dinheiro para a entrada, mesmo assim, seguiu a fila de pessoas e entrou no museu também quase sem se dar conta. Era o tipo de lugar onde habitualmente nunca punha os pés, mas aquele já não era um dia habitual sob nenhum aspecto. Surpreendeu-o a leveza e a monumentalidade do interior, o chão alternava cerâmicas delicadas nas áreas externas e parquet em madeira de lei nas salas, passarelas e corredores suspensos aproveitavam a iluminação natural, reforçando a sensação geral de arejamento da construção.
            Havia uma grande retrospectiva de um pintor do qual nunca ouvira falar. Os quadros da exposição eram grandes, todos muito semelhantes, recobriam as paredes de uma série de salas contíguas com pinturas a óleo como se repetissem uma ambição única ao infinito. Estava ali, bem na frente do seu nariz, a prova provada de uma outra temporalidade, uma duração que ia e voltava sem antes nem depois definidos. Sempre havia uma pessoa, nua, e quase mais nada ao redor, em geral um quarto vazio, uma poltrona, um canto de janela, ou corredor. Essas pessoas não eram belas, nem tinham corpos bonitos e malhados como na televisão e nos outdoors, corpos de pessoas ordinárias como ele, mas ostentando um desassombro incomum ― eles apenas estavam lá, por inteiro, mais à vontade do que ele jamais estivera em toda a sua vida.
            Sentiu vontade de tocar as telas, tinha a sensação de que estavam quentes.
            Constatou que os títulos das obras não surpreendiam nunca, regra geral simplesmente descreviam a cena representada: Homem, Mulher sentada, Mão sobre o peito, Mãos pousadas sobre o colo, etc.. O mais inquietante, porém, é que no centro da sala, expostas em vitrines envidraçadas, havia fotos do ateliê do artista com os modelos correspondentes aos quadros da parede. Como tantos, ele pensava que esses retratos seguiam regras pré-estabelecidas: o pintor e suas tintas atrás do cavalete, os modelos na sua pose. No entanto as fotos mostravam algo diferente, nelas, retratista e retratado davam a impressão de esperar, cada um do seu lado parecia aguardar alguma coisa que não estava no quadro. Como se ambos, artista e modelo, tivessem todo o tempo do mundo até se depositar no fundo de um grande vaso de vidro.
            Quase sem se dar conta, já não estava mais na Pinacoteca, mas sentado num banco do parque da Luz. Ao seu lado encontrava-se a modelo de um dos quadros da exposição, uma mulher pequena, de feições angulosas, com orelhas pequenas de criança e sorriso muito alvo ― a nudez dela, escandalosa à plena luz do dia, não parecia ser o efeito da ausência de roupas, antes uma espécie de condição original, anterior a qualquer sentimento de vergonha. Então a modelo se transformou na imagem da sua falecida mãe, ele chorava sem freios, encharcando a camisa branca que vestia. No momento seguinte a mãe levantou vôo, se encarapitou no alto de um abacateiro, e pôs-se a assobiar uma música antiga que ela lhe cantava para ninar.

            Saudade é canto magoado
            no coração de quem sente,
            é como a voz do passado
            ecoando no presente...

            Não, nada daquilo estava acontecendo de verdade, as transformações de mulher em pássaro, a sua mãe, nada era real. Devia estar sonhando em algum outro lugar que não ali, em algum outro dia que não aquele. Imediatamente a mulher-modelo do retrato desceu da árvore e retomou a forma humana, falando-lhe como se tivesse ouvido seus pensamentos. E só então ele a reconheceu: justo ela, a mulher que fizera tanta força para esquecer nesses anos todos. Reconheceu enfim mais uma das artimanhas do destino, mudando a memória na mesma medida em que mudamos no tempo. Nada está parado.
            ― Por que você tá querendo ir embora?
― Porque isto é um sonho ruim, porque eu não quero mais chorar.
― Acontece que se você acordar agora, nunca vai saber se estava sonhando que sabia que estava sonhando.
― Não preciso disso pra saber que você é falsa.
Tudo parecia com mais um dia normal de serviço: acordar, tomar café, pegar o lotação na Cidade Ademar, depois o trem em Jurubatuba, 2 conexões de metrô, descer na estação São Bento, andar 3 quadras a pé, entrar no edifício Cristiania, trocar de roupa no almoxarifado, e assumir seu posto de trabalho.



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