sábado, 12 de março de 2011

a outra



A entrevista em que a viu pela primeira vez era uma dessas reportagens que as televisões fazem habitualmente sobre temas do cotidiano ― seria o aumento das tarifas de ônibus e metrô? ―; o formato é conhecido: imagens do, ou da, jornalista falando, o mundaréu de indistintos cidadãos ao fundo entrando e saindo de coletivos, corta para uma fala editada do secretário de transportes, declarações de algum dirigente sindical, finalizando com os indefectíveis testemunhos de “populares”. Foi neste último bloco da reportagem, inteiramente por acaso, que fez a descoberta mais importante da sua vida até então. Não tinha como duvidar do que via e ouvia, ao vivo.

A emoção que a tomou mesclava susto e alívio, aquela embaralhada sensação de libertação que sentimos quando alguma coisa por muito tempo esperada/temida finalmente acontece. Daí em diante não sossegou mais, anotou o nome da repórter e o horário do telejornal. Só não conseguia era lembrar a birosca do nome da mulher ― poderia ser distinto, como Solange e Darcy, bem mais difícil é que fosse raro como Núbia ou Edwiges, fechava caso contra carnes-de-vaca do tipo Maria Aparecida, Marli, Regina Célia. Não teve Cristo na emissora que a impedisse de falar com a entrevistadora, a quem convenceu tratar-se de mais um caso de parentes afastados.

Prometeu que a avisaria para fazer um daqueles reencontros lacrimosos que tanto servem aos programas de auditório como aos jornalísticos em dias de pauta fraca. Conseguiu acesso à autorização que as pessoas entrevistadas pela TV assinam para que suas imagens sejam usadas; tinha agora o nome e o R.G., pouca coisa, mas já era um começo. Na verdade, se houvesse pensado um pouco, teria percebido a compulsão que a arrastou em cada passo posterior a estes fatos, como etapas inevitáveis rumo ao desfecho final. Na manhã seguinte foi à Santa Ifigênia comprar um CD-ROM que, por meros vinte reais, permitiu-lhe espiar as declarações do Imposto de Renda de todos os seus concidadãos.

Na posse das novas peças do quebra-cabeças (renda, nome completo, CPF, RG e endereço), deu o passo mais ousado: resolveu submergir e atravessar para a clandestinidade, onde teria os movimentos facilitados pelo anonimato. Abandonou a vida que levava sem titubear. Não foi uma tarefa simples, há sempre muitas coisas a explicar e gente a avisar: família, amigos, parceiros comerciais, etc. Percebeu o quão desavisadamente somos controlados em nossa supostamente livre individualidade; ninguém desaparece assim, do nada, sem levantar suspeitas. Pretextou uma viagem sabática ao exterior cujo diário seria um mural eletrônico de postais virtuais ― dois palitos montar fotos suas com monumentos ao fundo e textos engraçadinhos.

Arranjar uma cabeça-de-porco foi igualmente simples: aluguel adiantado, dinheiro vivo, nada de documentos, discrição e uma senhoria pouco perguntadeira; assim, ingressou na incerta fauna do Centrão, o centro velho da cidade. Deixava para trás uma carreira apagada de atriz em que, no entanto, se firmara como apresentadora de eventos e premiações, segmento no qual tinha se tornado uma queridinha dos diretores de casting. A independência financeira, conquistada sem que tivesse feito a si muitas perguntas, mostrava toda a serventia agora que se dedicava em período integral a investigar a vida de outra pessoa. Com o parceiro de apresentações internado numa rehab para drogados e bebuns, todos acharam perfeitamente natural que desse um tempo. Reciclagem.

A conversa transcorria em um apertado cubículo ao final do corredor à direita, quarto andar de um treme-treme na Líbero Badaró; a espelunca, situada num prédio que já devia ter conhecido seus dias de grandeza, atestada pela fachada em travertino e o elevador de porta pantográfica, resumia-se a três divisórias de compensado, um balcão de vidro exibindo placas de automóveis e duas cadeiras de estofado sintético preto. Em meio a uma miscelânea de comerciantes de ouro, lojinhas de games e DVDs piratas que populavam o edifício, a placa da porta anunciava os sóbrios serviços de despachante: limpava pontos na carteira e nomes no Serasa; na parede, um calendário com o mês atrasado e, no canto da sala, um vaso de plástico cor de telha com espadas-de-são-jorge.

― Iguais como duas gotas d’água. Repare, a perfeição está nas minúcias: os frisos, o carimbo, a contraluz, a granulação, os detalhes em 3D, chega ao detalhe da gramatura do papel... moça, tenha certeza, estas aqui são as Lamborghinis das réplicas, valem cada centavo que se paga por elas! Nós ainda lhe oferecemos um plus a mais, o número do documento é quente e sai limpinho em qualquer consulta no IIRGD...

― Erre-gê o quê? ― o homenzinho, que devia regular pela idade dela, tinha o bigode e os dedos irremediavelmente manchados pela nicotina; tratá-la por “moça” só se podia explicar pela tintura de vermelho intenso que aplicara aos cabelos recém cortados.

― Não, é i-i-erre-gê-dê. Instituto de Identificação Ricardo Gumbleton Daunt, o órgão que expede os atestado de antecedentes criminais; qualquer um pode requerer a partir do número do RG. Aí é que está o nosso diferencial: toda a documentação que fornecemos vem virgem como um bebê.

― Hmm, aqui diz que eu sou do Maranhão...

― Pois é, a gente vai onde tá mais fácil, onde tem os esquemas; só trabalhamos com papelada branquinha, e no Maranhão, bem... aquilo lá é uma zona, lá ninguém verifica é nada, lavrou em qualquer cartório, um abraço, vira oficial. O sistema não é unificado no país, acredita?

― Ô, se acredito... ― naquele instante ela teve o vislumbre da próxima parte do plano; reexaminou as carteirinhas uma por uma, pela primeira vez ia interpretar uma personagem com documentos “de verdade”.

― Faço desconto se for o pacote completo, ok?... Dá até pra pagar em vezes no cartão, bom, né?, ficou uma tetéia o trabalho no seu passaporte, entrada na Europa pelo aeroporto de Barajas, olha só, data e hora, e ali, ó, é de Bali daqui a dois meses... na outra pasta tem sua nova vida: RG, CIC, CNH, PIS e PASEP, tudinho. Muita gente faz isso hoje, às vezes tem até mais de um, chamamos de registro “anfitrião”; do jeito que a coisa anda, é mais garantido fazer, a gente nunca sabe quando vai ter problemas na identidade principal.

Um dos mais importantes facilitadores é que o patrimônio dela possuía alta liquidez, encontrando-se aplicado majoritariamente em três bancos de investimento. Para estas instituições, ela não só não havia viajado, como fazia freqüentes retiradas e transferências para uma conta de pessoa física que até então nunca constara em seus extratos ― que, aliás, junto com as contas de celular e cartão de crédito, redirecionara para o e-mail de modo a fazer todos os pagamentos via internet. Fingir uma temporada no exterior, continuando a morar e se locomover na mesma cidade, é façanha que só se explica numa megalópole; porém, tudo isto apenas esclarece o como ocorreu a transformação, apenas tangenciando o busílis, ou seja, o porquê do processo.

O fato é que não tinha topado com alguém que se parecia com ela num sentido convencional, algo assim como uma sósia que se encontra por acaso na rua ou numa festa; aquela moça simplesmente era ela vivendo na pele de outra pessoa! Essa mulher ― que agora seguia pelas ruas, pelos cafés e restaurantes, a quem acompanhava secretamente nas constantes viagens a trabalho, com quem ia às baladas e até mesmo visitar parentes no interior ―, de alguma maneira que lhe escapava ao entendimento, era absolutamente idêntica a ela. Não era semelhança ou parecença, mas ipseidade, um sentimento intraduzível para além da primeira pessoa do singular; a voz, os tiques, o gesto, as mesmas jequices, as mesmas pausas e vacilações. Duas gotas d’água.

Talvez fosse uma forma de arrumar a madeixa de cabelo, escorregando a hesitante mão boba para o lóbulo da orelha, enquanto sorria desavontade ― de imediato, soube que ela mentira para aparecer na TV: gerente de uma grande empresa, ela nunca usava transporte público. Lembrou desta cena inicial, por alguma razão enigmática, durante a conversa com R4z0r, uma lenda viva entre os hacktivistas; na cafeteria semivazia, com o notebook do rapaz sobre a mesa de fórmica riscada, procurava delinear-lhe as feições escondidas atrás de enormes óculos escuros e enterradas sob um boné dos Cardinals com a pala furada de piercings.

― ...certo, o que você quer não pode ser resolvido pelo ultravnc.exe, ia precisar que a pessoa baixasse e executasse o programa voluntariamente, o que não é o caso, precisa pegar um rastreador de IP, você sabe que estará hackeando o outro usuário, que vai se tornar um IP atacante não sabe?, então, alguns firewalls do Zone Alarm Pro podem te detectar. No próprio windows há o comando externo tracert que...?

― Posso ser processada por isso? ― era um sujeito curioso o tal R4z0r, pensou, procurado no mundo inteiro e no entanto incapaz de ir além de uma área de poucos quarteirões no bairro onde nascera. Agorafobia, diziam.

― Sempre pode dar merda, na rede sempre ficam rastros, os logs; cada computador só se liga à rede mundial por um número IP que é atribuído automaticamente, uma identidade de quatro octetos, olha o nosso agora: 192.168.171.299; a primeira metade designa as redes que nos conectam e os dois últimos identificam o host, ou seja, este meu computador aqui; entrou na web, pá, um número. Por isso nós podemos rastrear o IP dessa pessoa que você quer, daí mandamos um spyware para o PC dela, gosta do Messenger Plus?, ele dá as teclas digitadas, os movimentos do mouse, os sites visitados, as senhas, as fotos, vídeos, músicas, as pesquisas... melhor que ser amigo na rede social, não?

O próximo encontro foi mais difícil de chegar; o lugar era no final (!) da Estrada do M’Boi Mirim, bem depois de onde o Judas perdeu as botas, virando à esquerda. Por sorte era de dia, pois, a partir de certa altura, o motorista de táxi recusou-se a continuar e só a muito custo é que a deixou no ponto do lotação que a levou ao quilômetro da entradinha. Andou mais um troço de caminho pelo meio do mato até chegar a um portão com o número pintado a graxa no chapisco do muro sem reboco. O silêncio dali fazia com que a cidade parecesse uma entidade distante; dois pit bulls surgiram no terreno contornando um casebre na frente do terreno e ficaram rosnando para ela atrás das barras do portão de ferro. Lá dos fundos gritaram para que entrasse, antes que pudesse responder, um silvo agudo soou e os cães voltaram pelo lado oposto de onde tinham surgido.

― Belê, hmm pode sentar aí, os pneu é firmeza, vou contar a grana, só um momentinho... combinado não é caro, né? ― Peruquinha deixava os interlocutores na dúvida se era um homem muito feio, ou uma mulher que a natureza tinha escolhido para sacanear. Chefia do desmanche de carros, não ostentava um único pêlo no corpo disformemente obeso; o adereço que fazia jus ao apelido era um ignóbil chinó que mais parecia um Black Power de carnaval.

― Ok, ah, a automática tá no porta-luvas do carro, e fica sussa: a placa é clonada, mas se os homens te parar é raro eles conferir o chassi...

O silêncio daquele lugar continuava a assombrá-la, onde andariam os pit bulls? Alegou que comprava a arma para defesa.

― O caralho, fia, joga merda nos meus olhos não, tu vai apagar alguém, que eu sei. Não dá outra, é sempre nisso que essas paradas acabam. Sabe por que é que nego tira a roupa um do outro antes de trepar e depois cada um se veste sozinho? Porque depois que você tá fudido ninguém mais quer te ajudar! Hahaha! Relaxa, mina, o que você tem é que pegar na M’Boi à direita e nunca mais voltar, se tu rodar e abrir o bico sobre isto aqui, eu te acho na cadeia, valeu?

Ele/ela sacara o essencial, mas faltara a sutileza, já que, a rigor, ia se matar; o seu antigo eu ia voltar de viagem e morrer durante um assalto, isto é, colocaria o cadáver da outra na cena do crime vestindo as suas roupas e com os seus documentos na bolsa. Daí em diante assumiria plenamente a identidade que conhecia nos mais íntimos detalhes, ninguém perceberia a diferença. Na falta de um tempero passional para atiçar a mídia, e tendo a sorte de haver outro assunto de ocasião mais suculento, o caso iria engordar as estatísticas de latrocínio despercebidamente. Sentia um pouco, mas não demais, pelo sofrimento que causaria à família; mas a compensação da herança que lhes deixava seria sopa no mel para os irmãos e o pai viúvo.

Ainda não tinha chegado à Santo Amaro quando se deu conta de uma pequena falha no estratagema: o passaporte! O passaporte é o único documento que vincula um dado antropométrico, as digitais, às certidões cartoriais e à foto ― impressões dos cinco dedos da mão direita ficam armazenados no sistema da polícia federal, o que lhe impediria a renovação. Ficaria presa dentro das fronteiras do Mercosul, gaiola enorme é certo, mas o caso é que havia um buraco na coisa toda.


(plágiomenagem a José Saramago)

6 comentários:

mauverde disse...

Porra, dá um livro ótimo essa introdução, rsrsrsrsrsrs

filipe com i disse...

Pois é... um tal de Saramago escreveu um livro, "O homem duplicado" sobre o tema, de modos que fica um pouco (só um pouquinho)duro acrescentar algo. Acho que fico pelo conto mesmo tks e parabéns, bro

Cintia Mendonça Garcia disse...

Ahhh, acabou?! Fiquei com gostinho de quero mais...

Aili disse...

Fantástico!!

Interessante citar a Sul, algum motivo...?

José Doutel Coroado disse...

Caro Missosso,
belo exercício e bela homenagem!
abs

filipe com i disse...

tks a todos, uma explicação: no mercosul os brasileiros entrm só apresentando o rg, näo precisa passaporte.