3. OSSADA 19:08
O
carro, um Monza de cor vinho, vidros filmados, vinha a toda pela avenida; seus
ocupantes urrando o nome do time de coração, atirando latinhas vazias de
cerveja nos outros carros, assobiando, xingando, braços pra fora, batiam na
lataria marcando o ritmo dos seus cânticos de guerra, em suma, faziam um escarcéu
capaz de acordar as almas antes do juízo final.
“Sou
Independente, eu sou,
vou,
vou dar porrada eu vou,
e
ninguém vai me segurar...”
Os
demais motoristas abriam espaço para o veículo apinhado de hooligans de uma das
mais temidas torcidas organizadas da cidade: a Torcida Independente
são-paulina. Que besta ninguém é.
Não havia
motivo aparente para tanta festa, já que a final da Copa João Havelange
(arremedo de campeonato brasileiro) ocorrera bem longe dali no dia anterior, em São Januário ,
subúrbio do Rio de Janeiro. O jogo entre Vasco e São Caetano, interrompido por
causa do desabamento de um alambrado aos vinte e três minutos do primeiro tempo,
logo após Romário sair contundido, deixou um saldo de cento e dezessete feridos,
dois em estado grave.
Por um desses
azares do azar, o Monza dos ultras deu uma fechada num motoqueiro que também
vinha numa pressa de quem vai tirar a mãe da zona. Pilotando a CB 400, lá
estava a figura esquálida do Ossada; que não se fez de rogado: gesticulou
sugerindo-lhes uma prática sexual pouco ortodoxa, insinuando, en passant, que as genitoras dos rapazes
eram praticantes assíduas.
Uma
temeridade. Ossada tinha mais colhões do que miolos, mais sorte que juízo;
assim que parou no farol, atiraram sobre ele um morteiro que quase arrebentou
moto e motoqueiro junto. Com os ouvidos zumbindo da explosão e sangue nos
olhos, Ossada passou a perseguir os fanáticos, ziguezagueando alucinadamente na
avenida Giovanni Gronchi.
Que é que eu posso usar contra esses caras?
Deixa pensar o que tenho dentro da mochila... Ah, já sei, o refri!
Lembrou da
garrafa pet com refrigerante que carregava, tirou uma das alças da mochila,
girando-a para a frente do tronco ― tudo isso sem diminuir a velocidade nem se
distrair da louca perseguição. Chacoalhou a garrafa, emparelhou com o carro,
abriu a tampa e esguichou o conteúdo gasoso no parabrisas do Monza, cegando
momentaneamente o motorista. Desgovernado, o carro subiu na ilha da avenida
estourando os pneus dianteiros.
“Aí seus
cuzão, chupa que é de uva!”
“Nóis ainda te
pega, alemão do caralho!”
Frederico
Sassaki Heilbron, conhecido como Ossada era uma figuraça: galalau de um metro e
noventa de altura praticamente desprovido de gordura, donde o apelido, que
ficava mais irônico por seus pais serem ortopedistas. Da herança materna
oriental, só o cabelo farto e liso, mas no restante era um perfeito viking...
doidão. Segundo constava, desde os quinze até seus vinte anos atuais, teria
passado no total uns cinco minutos sem estar sob os efeitos de algum
entorpecente.
4. PROFESSOR CAMARINHA 19:10
Osmar
Camarinha, professor e doutor em filosofia, um dos maiores especialistas na
Escola de Frankfurt, estava sentado no trono do banheiro esvaziando seus
intestinos para a sessão marcada com Natasha. Havia tomado, como de hábito
nessas ocasiões, uma mega dose de laxantes.
Uma
questão de higiene. E também de ordem, algo que preza acima de tudo.
A
atenção dele se fixava uma gota de água parada no bocal da torneira do
lavatório. A gota não caía nem aumentava de tamanho, como um batimento cardíaco
suspenso entre a sístole e a diástole. Ou como a sua carreira acadêmica.
Um
novo arranco de cólicas desentranhou os últimos restos de conteúdo das suas
torturadas tripas. Só líquido, e já quase incolor. Pensou com raiva nos seus
inimigos dentro da Universidade — uma carreira até então brilhante, doutorado
defendido na Alemanha, artigos publicados em importantes revistas européias —,
pra vir um bostinha, que mal conhece Hegel, bloquear sua mais que merecida
ascensão!
Descuidara
do aspecto partidário, apesar de ter feito a lição de casa na política
institucional. Networking é tudo hoje em dia, mas não ser de esquerda nas
humanidades é uma merda. Ontem, hoje e, talvez, sempre.
Acabou
de largar sua livre-docência no meio, decisão custosa, dolorida, mas
necessária. Sem essa de ficar malhando ferro frio. Mas a vida também traz suas
compensações: estava em processo de se transformar num intelectual midiático,
um alargador das fronteiras do pensamento, desses que escrevem em jornais e
revistas de prestígio suas prestigiosas reflexões sobre os impasses da
contemporaneidade.
O
telefone toca na sala, ele se levanta e corre a atender marchando como um
pingüim por causa das cuecas, arregaçadas até os tornozelos.
"Alô,
morzão?, tá tudo bem com você? Estão todos aqui em Guaxupé perguntando por
você, quando chega, etc., é, eu sei... sei como é importante pra você
participar dessa reunião, pra sua carreira e tudo mais, o Theodoro só fala que
quer o pai..." a pentelha da mulher e da família dela não se conformavam
com a ausência do famoso professor Camarinha no rastapé de fim de ano da
caipirada.
Que estopada aquilo deve estar, santo Deus.
"Também
tô morrendo de saudades de você môre, te ligo amanhã pra contar como foi, tá?
Reza muito por mim, você sabe, é só uma festinha, um sarau na modesta cobertura
duplex do editor-chefe... É, meu nome saiu na primeira página da edição de
hoje, cê viu? Tá, môre, beijão, te ligo amanhã, beijo...", desligou
aliviado, pegou o jornal para reler seu artigo. A repercussão do texto já era
intensa; saboreou a releitura em pé, antes mesmo de limpar a bunda.
Na perspectiva prevalente da modernidade
ocidental, ao menos desde o romantismo aos nossos dias, o amor configurava um
ideal de realização afetiva que ensejava um tipo de felicidade no qual o êxtase
da dissolução no outro era compatível com a transcendência do desejo
individual. Atualmente, nestes nossos tempos de narcisismo feroz e consumismo
desenfreado, o amor se encontra como que privatizado, dessacralizado; pouco a
pouco, aceitamos a noção de que a experiência amorosa pouco mais é que uma
função fisiológica, um encontro fugaz regido pelo acaso e cujo destino inelutável
é a provisoriedade.
Um comentário:
Gostei! Gostei e gostei.
Adorei o Ossada
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