sexta-feira, 18 de dezembro de 2015

os culpáveis (final)



A vida é um seriado que você vicia antes de saber exatamente qual porra de história se trata, aquele tipo de filme que existem milhares de livros escritos só pra tentar explicar, vou passar a porra da vida aprendendo a ler o tal livro da vida sem ajuda de tutorial no Youtube, enquanto isso, vou fazendo todas as cagadas possíveis nesta encadernação, aliás, tremo só em pensar o que pode ser a minha próxima encarnação com o karma acumulado na atual e contando, vamos ampliar a bigger picture (organizador de fatos nº ∞): as semanas vão passando lentas como conversa de novela, continuamos a dormir na sala, eu no sofá quebrado, o Tomate no chão rachado com meio corpo dentro da cozinha, Faraco e Moura se aboletaram no quarto e grudaram na aba do meu chapéu feito duas cracas, esses dois, sei não, passam o dia inteiro no quarto, dormem na mesma cama, se barbeiam juntos de toalha e peito nu... enfim, depois daquela conversa escalafobética sobre o Capitão Nascimento acredito em tudo vindo desses comédias ― acho que alguém vai ter que desenhar pra mim.
Mas o pior eram as saudades: Brenda, dadivosa Iansã, saiu da minha vida trovejando e sumiu no turbilhão da galeria metamorfoseada num daqueles pitéus de condução, brejeiras gostosinhas que nunca vão ser suas, mas são o verdadeiro sal do transporte público, ó Brenda das minhas bronhas, onde está você?, que rebolava gostoso e manjava dos paranauê, onde andarás nesta paulicéia tão desvairada e cheia de tentações pras morenas safadas de coxas grossas?, confesso que já nem me preocupava com o destino do pobre Uzodima ― os seqüestradores não fizeram um único contato ―, só queria a mina de volta, por outro lado, fui criando uma jeriza danada em relação ao Tomate, sei lá, uma tiriça, tipo inhaca de estar ali socado com 3 marmanjos numa quiti, a ex mulher mandando um oficial de justiça atrás do outro, se pá devo sofrer de claustrofobia misantrópica, e como a mente é uma montoeira de contradições, ficava vindo direto Chucho Valdés na rádio-cabeça: “Se me hizo fácil/ borrar de mi memória/ a esa mujer a quien/ yo amaba tanto/ Se me hizo fácil/ borrar de mi este llanto/ ahora la olvido cada dia más y más...”
― Não sei não, o Dingo parece meio tristinho. O zoológico de Los Angeles ainda não mandou a Cindy pra fazer companhia pra ele.
― Verdade, Ava?, acho que vou mandar uma carta pra esse zoo, se eles forem mesmo bons nisso quem sabe não descolam uma pra mim?
― Prefiro quando você tá namorando, quando tá sozinho, daí você fica triste e perde o trabalho, daí não consegue comprar salgadinho pra nós.
― Hmm, minhas finanças têm andado meio... trash, mas as perspectivas melhoraram, me encomendaram um job num resort 6 estrelas em Koh Phi Phi.
― Onde fica isso?
― Tanto faz, não vou pra lá mesmo, já fico bem feliz de evitar o descanso sabático que a sua mãe quer me dar.
― Pai, você é um homem descansático?
A abrupta queda na taxa sangüínea de todas as drogas que circulavam no meu corpo me deixou mais sonolento, bodeava a qualquer hora no sofá desabado encostando as vértebras diretamente nas ripas do arcabouço, e sonhava, horas a fio, como se não houvesse amanhã, invariavelmente lá estava eu correndo atrás da bela Brenda, mantida cativa numa masmorra pelos terríveis irmãos Trufadalho, que eram a cara de Faraco e Moura, enquanto as artimanhas do perverso Mascarin (a fuça do desgraçado do Tomate) me mantinham longe dos braços e abraços da mulher amada, toda essa atividade onírica, porém, me cansava de morte e, obviamente, não contribuía para melhorar a relação estremecida com o Tomate.
E então, um belo dia, chego na goma e os dois tiras estão arrumando suas coisas.
― Estamos indo, obrigado por tudo.
― Mas, e a investigação, o Uzodima?, bem, de nada, foi um prazer vocês detonarem a minha vida.
― Queria dizer pra você que foi muito importante pra nós, concluímos que não tem mais sentido a gente não morar juntos. O americano deu sinal de vida pra embaixada. Tchau.
Tempos depois o Uzo apareceu em casa, uns 60 Kg mais magro, falando que tinha sido iniciado na umbanda e batizado no movimento, agora ele pagava “cebola” e vivia na sintonia trabalhando pra firma como ‘resumo” da zona sul, pra abreviar uma história longa, no cativeiro ele descobriu o verdadeiro sentido da existência aderindo ao movimento social radical que sempre buscara: o Primeiro Comando da Capital, fiquei tão zonzo com aquele jorro de notícias e realidade mundo-cão que desabei na poltrona, fiquei uns bons minutos ali estatelado após a saída do ex-gordo e ex-amigo americano, até que a minha mão esquerda apalpou um tecido fino no desvão das almofadas do sofá: a calcinha da Brenda!
E então, toda a cena se iluminou por um relâmpago cruzando a minha mente obscurecida, estava tudo ali bem debaixo do meu nariz sedento da brite: a calcinha que faltava, o local do crime e... o filho da puta que estava lá, naquela mesma sala, enquanto eu era interrogado madrugada adentro!, fiz um escândalo de puta pobre e escorracei o Tomate do meu apê, sovando-o com a ira de Thundera escada abaixo e cuspindo-lhe na cara toda a ingratidão.
― Volta pra rua, seu filha da puta, volta pro teu lugar: o nada!, seu mudo de merda, oferenda de esgoto.


sexta-feira, 4 de dezembro de 2015

os culpáveis (7)


Descobri ― mais exausto que estarrecido, e menos indignado do que deveria ― uma escala global-local da cidadania: assim como eu era mais gente que o Tomate, e por isso apanhei civilmente pouco na DP, a vida do Uzodima era incomparavelmente mais valiosa que a minha, e por isso ganhei duas tornozeleiras humanas na minha aba durante um longo mês, a versão gaiata de Starsky e Hutch passou a gerenciar cada aspecto do meu caótico cotidiano: da marca de café que abastecia seu insaciável apetite por estimulantes, ao papel higiênico folha dupla completamente fora do orçamento doméstico, saídas vigiadas, celular grampeado e confiscado, computador hackeado, encher a lata?, arrastar a vizinha do terceiro prum tetê-à-tête?, dar uns tecos na nine?, nem sonhar, tio, Faraco e Moura impuseram disciplina espartana e abstinência forçada a tudo aquilo que antes eu chamava vida pessoal.
A coisa começou errada de cara, logo ao chegar rolou um bafão com a Brenda, aliás, depois daquela dê-erre nunca mais nos falamos, mas me adianto, ela estava usando aquela sainha deliciosamente micro, liberado antes de mim, o Tomate também estava lá no apê de olhos pregados no chão, mesmo assim dava pra ver o estrago feito na faccia do coitado, um molambo cambaio de gente, a Brenda, ao contrário, veio pra cima fervendo na veia: sangue no zóio e faca no dente, ignorou a presença dos tiras e soltou a cachorrada em mim, sublinhando o rap de xingos com tapas e arranhões distribuídos sem dó.
― Custava atender a porra do telefone, custava?, seu merda! Uma mensagem, uma explicaçãozinha que seja... daí, lá pelas tantas, chega esse cretino todo fudido que não explica piçiroca nenhuma. Seu calhorda, cagalhão!
― Amorzinho, posso explicar tudo mais tarde? Sabe o que é?, tive uma noite do cão...
― Ah, sim, claro que você vai ter uma explicação, sete um é contigo mesmo, mas quer saber?, cansei do teu xaveco, papudo. Você quer é o Nelson Rodrigues todo: eu correndo nas delegacias e hospitais atrás do idiota que me faz de idiota, comigo não, cachorrão, tô por aqui dessa sua vida farra-pinga-e-foguete!
― Meu bem, vamo lá no corredor?, pelo menos lá, ao contrário destes cavalheiros, os vizinhos já conhecem os detalhes tão pequenos de nós dois ― na verdade, apesar do cansaço e dos safanões da Brenda, tava seco pra dar um cata naquelas coxonas. Sem dar bola pro bafafá, Faraco e Moura se instalaram no meu quarto sem a menor menção de pedir licença.
― E esses daí são o quê?, seguranças do Love Story que você levou o gringo? Vai tomar no cu, filho da puta presepeiro!
Fomos pra fora do apê, àquela altura minha pitchula choramingava lamurienta deliciosamente fazendo biquinho com a boca rosada e limitando as agressões a poucas (mas doloridas) muquetas eventuais, um assunto foi levando ao outro, e, antes que ela conseguisse perceber a falta de transição dramática, estávamos dando um amasso federal junto à banca do vendedor de balas e doces do andar, quando fiz nova e estonteante descoberta: minha musa estava sem calcinhas!, fato que em condições normais até faria parte dos nossos joguinhos sacanas, naquele momento me jogou num abismo de sofrimentos chifronésios otelianos, tamanha saliência não ornava com o manto da indignação que recobria a minha amada.
― Mas que porra é essa?, tem alguma coisa que cê precisa me contar, Brendinha?
― Não muda de assunto. Só... esqueci, foi tudo. Quem deve explicações aqui não sou eu.


domingo, 29 de novembro de 2015

os culpáveis (6)



Onde estaria o Uzo numa hora dessas? preso no quartinho de algum barraco infame, ou amarrado e amordaçado no bunker do trafica local enquanto uma assembléia de meliantes decidia sobre a sua continuidade neste plano físico e espiritual?, imaginava o pobre sentenciado, levado por entre névoas turvas para um descampado: rinoceronte abatido sendo arrastado pelo chão, um vulto prestes a se tornar anônimo, a bata comprada num brechó afro do Greenwich Village rasgada e ensangüentada, a mais nova vítima da guerrilha urbana, morto por engano, caído no matagal, descarnado por urubus indiferentes ao manjar de carne cevada por comidinha glúten, sódio, açúcar, lactose e picanha free, como ele mantinha aquele corpitcho pra lá de bem fornido banindo todo o rango trasheira eu nunca chegaria a saber.
― Você trouxe o gringo pruma armadilha? Suas pupilas estão dilatadas, usaram drogas? Manteve relações sexuais com o seqüestrado? ― Moura, o federal das unhas manicuradas, repetia basicamente o roteiro do interrogatório factual dos outros policias, com a notável exceção de, aqui e ali, inserir esse tipo de perguntas capciosas entre um gole e outro de Red Bull.
― Falando nisso, doutor, posso dar uma ligada pra Brenda? Ela deve estar...
― Nem pensa, essa porra precisa ficar livre caso os caras liguem pra pedir resgate. Sinceramente, seqüestro é a melhor hipótese pro seu amigo... e pra você também. O seu outro comparsa imbecil foi liberado, não cantou nada, tudo que temos é: um americano sumido, a embaixada apertando nossas bolas, e a conversa mole de um jornalista chapado ― Faraco, o do Rolex, transitava do morde pro assopra com uma facilidade alucinante, sobrepondo na mesma e indivisa pessoa as máscaras do good e do bad cop, mas o pior estava reservado pro grand finale da noite em claro.
― Seis da matina, por hoje é só. Vamos ― levantaram juntos.
― Ei, vocês vão me deixar aqui?
― Não, você vem conosco, o governo do seu país vai te dar uma carona e dois carrapatos. O delegado não tem nenhum motivo pra te prender, e nós nenhum pra ye soltar. Enquanto essa trolha não sair da nossa bunda você é nosso.
Menos mal que eles iam me levar pra casa, menos bem que iam ficar lá hospedados até a fita se desenrolar, se por um lado perdera o financiamento internacional, do outro ganhava dois guarda-costas particulares e o rolê na barca chapa fria da PF, se tivesse que pegar o buso naquele fim de mundo ia ser foda, mas a foda maior seria explicar pra namorada que o meu apê aumentaria a taxa de ocupação, organizador de fatos n².k.π.fatorial: Brenda é a gatinha de saias curtas e coxas grossas que tem matado a minha sede carnal quase tanto quanto saturado meu volume sacal, o velho lance da posse condicionada, comigo as mulheres invariavelmente recaem na pira do “vou mudar esse cara”, constatada a impossibilidade, dão no pé e passam a me odiar com gosto, tenho sólidas suspeitas de que na contabilidade da Brenda estou a poucas pisadas na bola de levar a bota final.
― Escuta aí, ô repórter, na tua área tem um monte de bicha, tem não? ― Moura, o do cabelinho à boys band, quebrou o gelo na viatura enquanto voltávamos.
― Acho que sim, quer dizer, não sei se tem mais ou menos, também eu não conheço outra profissão...
― E o capitão Nascimento, você acha que, talvez, ele poderia? ― Faraco parecia me introduzir a uma espécie de polêmica interna da dupla.
― Qual, o do filme? Bom, nunca pensei nisso... ele era casado, ou separado, acho, na verdade tem o lance lá com o filho.
            ― Isso não quer dizer nada, sempre se pode mudar, não?
― Que eu me lembre, na época, a grande dúvida é se ele era fascista.
― Ah, mas a imprensa esquerdinha caviar sempre pensa isso de nós ― havia uma indisfarçável mágoa na voz do Faraco.
― De todo modo é meio forçado, há poucas evidências disso, tanto no Tropa 1, como no 2 ― bizarramente, lá estava eu tentando ser a voz da razão na pendenga.
― Tem razão, e depois, nestes casos nunca existe prova definitiva: o camarada se vestir de mulher não faz dele gay, gostar, e até transar, com homem não quer dizer que seja...
― Bom, mas então o que seria um gay?
― É quando o sujeito sofre por causa de homem.


quarta-feira, 25 de novembro de 2015

os culpáveis (5)



O tenente Carmona tem idéias definidas:
― Pega um, mastigando você pensa melhor ― estendeu-me a embalagem de chicletes sabor canela.
Não gosto de chicletes, nem do sabor canela, mas aceitei porque era a primeira coisa que me ofereciam além de tabefes e socos nas costelas naquela delegacia.
― Desculpa tenente, não é querer lhes dizer como fazer seu trabalho, mas o senhor poderia dizer ao pessoal do plantão pra parar de bater no meu amigo Tomate? Não é má vontade dele, ele não fala mais desde que foi atropelado e perdeu um meio quilo de miolo...
Pelo rádio pendurado no peito do uniforme cinza do oficial chegou um sucinto QAP informando que o elemento conhecido como Chacal acabara de bater os chinelos de dedo, sem se alterar, respondeu burocraticamente e voltou a fixar um ponto bem no fundo dos meus olhos.
― Que leve meu salve pessoalmente ao Satanás. Parabéns pra rapaziada.
Tardei pra reagir com algum grau de adequação à nova situação: tiroteio num bar de perifa, seqüestro do negão da SUV, e dois suspeitos que não estavam “colaborando” nas investigações da entediada equipe de plantão da delegacia local, isso que dá ter cheirado em serviço, agora pra voltar ao modo normal de cidadão brasileiro lidando com o serviço público da pátria amada tava osso, minha sugestão de que uma reportagem sobre as difíceis condições de trabalho da polícia militar não despertava o menor entusiasmo no Carmona, ele parecia mais interessado em outro detalhe do caso.
― Gringo, você disse? Veja, meu amigo, se você me ajudar, eu te ajudo, tamo aqui trampando de madrugada por um salário de fome, esse caso complica cada vez mais, e não tem nem uma apreensão, um agradinho pros rapazes. Assim fica difícil.
― Claro, claro, entendo bem esse lado, senhor, trabalhar por salário de fome é comigo mesmo, é que... já disse tudo várias vezes, tentei fazer o gringo desistir, mas ele é loucão, queria porque queria conhecer os fluxos da quebrada, acha que a nossa malandragem é revolucionária, e coisa e tal, esses papo de ongueiro esquerdopata...
Naquele momento entrou um policial civil na saleta obtendo a inteira atenção do tenente, segundo as notícias, dois agentes da federais estavam a caminho e o caso subia de jurisdição, não seria nem chamada a divisão anti-seqüestros da capital, o PM se levantou subitamente me descartando da sua zona de preocupações imediatas, o consulado americano havia confirmado a minha história.
― Tu fica aqui mesmo, os caras tão vindo ― o tenente Carmona percebeu que eu fiz menção de me levantar ― Moraes, avisa seus homens pra diminuir com o outro suspeito lá, parece que é débil mental mesmo. Você vai sentir saudade de nós, meu amigo.
O chiclete tinha um gosto terroso que demorei a associar com o gosto de sangue oriundo dos tabefes dos tiras, era de se admirar a limpeza e eficiência das autoridades: os camaradas me bateram pra caraca sem deixar vestígios, estava com dor em tudo que é lado e sem uma marquinha ou machucado, serviço profissa, embora fosse de se esperar que não houvessem sido tão cuidadosos com o meu broder, imaginava o pobre Tomate transformado num molho bolonhesa, e já que a noite era uma criança, só me restou esperar feito corno pelos dois próximos personagens daquela comédia de humor negro, agentes Faraco e Moura.
O policial federal Moura tinha cabelo de cantor de boys band e unhas manicuradas, mas o que mesmerizava o meu olhar era o bem mais preocupante Rolex dourado no pulso do Faraco, ambos mascavam chicletes e bebiam quantidades industriais de energético, trataram os demais canas com o mais absoluto desprezo e providenciaram o pior café da minha vida, capaz de lançar um diabético em coma com meia golada, desde o primeiro momento deixaram evidente o quanto cagavam pros meus contatos na grande mídia, Moura estava com o meu celular na mão.
― Quem é Brenda?
― Minha... mina, quer dizer, estamos saindo, ela quer um lance mais, tipo compromisso, sabe como são as mulheres...
― Bom, acho que vai ter que problemas com ela. Mas isso vai ser mais tarde, por enquanto este celular, e o senhor, são os nossos únicos contatos com o senhor Uzodima Iweala.
― Qual é a relação entre você e o americano? ― Faraco fazia a pergunta a poucos milímetros do meu rosto, felizmente pra mim, usava o perfume Gió da Armani.
Contei toda a história pela milésima vez na noite, atropeladamente como é do meu estilo, desejoso de agregar sinceridade a cada frase, nessas horas eu sempre penso que a minha vida seria mais fácil se eu falasse como o José Miguel Wisnik escreve.



domingo, 22 de novembro de 2015

os culpáveis (4)


Acontece que para designar o desejo de fazer (ou se fazer) sofrer, torturar, e até mesmo matar, em todos esses casos a crueldade seria extremamente difícil de determinar ou delimitar; uns reconhecem aí a essência astuciosa da vida: a crueldade como força vital sem fronteiras e sem oposição, quer dizer, sem fim nem contrário; outros já sustentam que o derramamento de sangue é contínuo, mas não há história sem contraposição, sinto muito pela bolha de segurança que o mundo ocidental construiu à sua imagem e semelhança, a guerra ao terror e às drogas, o ecoapocalipse nos acachaparam no ground zero das Torres Gêmeas, Nova Iorque ou Cabul?, Paris ou Tijuana?, Jacarta ou Osasco?, o futuro é um lugar onde o centro e a periferia chafurdam na mesma lama depois da bomba explodir, do drone focalizar a mira, do avião cair, somos todos iguais e indiferentes antes do fanático/maluco/milico entrar na cena metralhando a esmo.
            E acontece também que o Uzodima não teve papas na língua quando se tratou de explicar por que me queria: segundo ele, eu sou o “homem circunstancial”, um cabra totalmente marcado pelas condições do entorno, ou seja, totalmente determinado pelos parâmetros do aqui e agora, sem a mais leve réstia de princípios éticos universais ou uma moral própria, portanto, um “objeto antropológico” ideal para estudar o tal mundo pós-pós, dá pra agüentar amigos assim?, ele parece muito interessado na nossa cultura das margens, organizou uma visita a um “fluxo” na periferia de São Paulo, e continuou filosofando: o Brasil não é como a África, onde a barbárie reina sem máscaras, aqui temos eleições livres, a justiça dos ricos, imprensa livre, liberdade de ir e vir... só que não.
            Só que não foi o que eu e o Tomate pensamos logo, não que o Tomate tenha dito alguma coisa (ele nunca fala nada), mas não gostei de cara do cheiro da mexerica: um gringo negão e dois manes no Valo Velho?, e o Uzo nem conhecia direito o cara que era o contato dele lá na quebrada, mano, zona sul de Sampa não é para os fracos, além do mais ele alugou uma barca enorme pra nos levar ao pico, afinal, aquele corpanzil beirando os duzentos quilos não cabia em qualquer carrinho mille mais discreto, a balada toda tinha jeito de programa de índio, mas, o cara tava pagando.
            ― Que cara é essa, bro, estás aburrido?
― Quase nada meu irmãozinho, só tô deixando de ver a minha mina hoje pra pagar um mico tamanho família, num lugar perigoso que nem o waze sabe onde fica, tirando isso, tô bem sussa...
― Enton stay cool man, sussa, right?. Esse cara no habla nada?
― Suave na nave, my brother Uzo, o Tomate não faz mal a ninguém, é o nosso pé de coelho nesta doideira, relaxa, não ia deixar o broder moscando em casa sem fazer nada.
― Exacto, yo, ainda non vi fazer nada esse cara.
Batata, nos perdemos numas quebradas sinistras, até que parei a caranga num boteco de porta de garagem pra pedir informações, enquanto e não, decidi dar um pulinho no banheiro do pé sujo, que no caso era um terreno baldio ao lado do bar, precisava urgentemente dar uma cheirada.
Quando voltei ao balcão, senti uma sombra cruzando meu campo visual, achei que iam assaltar o boteco, mas o dono olhava por sobre o meu ombro com uma expressão mais curiosa do que preocupada, a cena acontecia à minhas costas, fora do bar, pedi um maço de derby, paguei, e só então me virei pra olhar também, um cara pra lá de mal encarado puxava o Uzodima pra fora da van alugada e lhe apontava uma arma pra cabeça, um segundo cara de boné imenso saiu em seguida de dentro da van dando tapas e coronhadas no Tomate, após deixar o pobre desacordado no chão, dirigiu-se a nós dentro do bar.
― Todo mundo no chão, seus zé-ruela do caralho!
Como se não tivesse sido suficientemente claro, começou a disparar na nossa direção, atirei-me ao chão caindo entre latas, copos, garrafas, caixas e uma chuva de vidro quebrado, um projétil atingiu a mesa de sinuca atrás da qual me escondera, a balaceira nos manteve cinco longos minutos colados ao chão, quando saí do meu esconderijo as portas da van continuavam abertas, as luzes internas acesas iluminando o desamparo do veículo recém vandalizado, do Uzodima só restava um botão da sua bata afro, desprendido provavelmente na difícil saída do carro do obeso amigo, uma nuvem subia ao céu estrelado inundando a noite com o cheiro inconfundível da pólvora.


domingo, 1 de novembro de 2015

os culpáveis (3)



            
            Os pobres são o graveto na roda do sistema, o detrito tóxico produzido pelos intestinos diabólicos da política, da economia, da religião e dos reality shows, mas o pior fica reservado aos que se tornaram pobres, esses os verdadeiros órfãos da terra, os que dormiram no ponto de Canaã e só desceram quando o Expresso 2222 parou no Complexo do Alemão, ok, o acima descrito muquifo que me alberga não fica na Cidade Maravilha mas no centrão de Sampa, o glamouroso Edifício Prestes Maia 911, onde aluguei uma quitinete plus size na imobiliária Sem Tetos do Centro, endereço ao qual sou proibido de levar minha filha (e que também estou prestes a perder por inadimplência), organizador de informações nº 427: o meu, por assim neoliberalmente dizer, processo de escorregamento vertical descendente na escada social resultou de um combo azarado da crise na mídia tradicional com outros probleminhas no tocante a manguaça e no inalante a cocaína, certa vez um médico me explicou que o álcool e o pó formam uma nova droga dentro do corpo, o que pra mim descreve satisfatoriamente a indescritível sensação bipolar de enfiar o pé no freio e no acelerador ao mesmo tempo quando enfio o pé na jaca.
            Aqui, na maior invasão habitacional da América do Sul, me domiciliei no 12º andar dos 20 ocupados (os 2 últimos, interditados por um vazamento, servem como depósito de entulho), aliás, 12 longos andares que o Uzo maldisse em bom inglês na penosa ascensão com as bagagens, a vista gourmet da sala inclui janelas de parede inteira com vista pra face cega do prédio vizinho, localização privilegiada na avenida do mesmo nome, o Prestes Maia é o epicentro de uma intensa vida social congregando umas 1500 pessoas de 300 e tralalá famílias, além de diversos serviços como cabeleireiros afro, manicures, pequenos comércios de balas e doces, salas de reunião, distribuidores de água e gatonet, além dos inevitáveis barzinhos e biqueiras, e é diante de um dessas distribuidoras de paraísos artificiais que me encontro com 2 Franklins emprestadas pelo Uzo coçando no bolso e milhões de dúvidas depositadas nalgum paraíso fiscal do cérebro, tudo bem, recapitulando, pra traduzir a tragédia e trair o dramaturgo, vamos aos números mágicos: com o dólar a quatro, aquele volume vivo das duzentas doleta (!) nas minhas calças dava uns 800 paus, suficientes pra matar as locações atrasadas com o movimento social da ocupação, mas que também poderiam amortizar a dívida ativa com o trafica local e ainda financiaria uns pinos extras pra eu merecidamente cheiremorar minha redenção financeira e moral, adivinha no que deu a dúvida cruel: é a tal coisa, pulvis est et in pulverem reverteris, deve ser daí que tiraram o termo “revertério”...
            ― Mas então, Uzodima meu velho, que tal me explicar essa pauta mutcho louca que tu vendeu pros publishers lá na gringa? Quer dizer que este Brasilzão em crise é o bicho, somos o país cyberpunk do momento? ― depois do microteco que dei lá mesmo na biqueira, já não consigo falar com o amigo ianque sem lembrar que ele escreve numa revista com anúncios perfumados e artigos estilosos que ensinam a levar uma vida estilosa.
            ― Se prendes los números entendes, bro, 1 % poseen 50 % do world´s wealth, esto non é o sociedade que vai prezar valores de democracia e liberalismo, este mundo é de países autoritarian light, acá está em process um grande social experiment, o Brazil disfraza mejor que Rússia ou China, é um democracia representativa apparently, só que non, como vocês dicem.
― Hahaha, malandro, por essa nem os nossos sonhos mais ufanistas esperavam, quer dizer que somos mesmo o país do futuro, só que o futuro é uma bela bosta tipo Walking Dead, e por isso largamos na frente dos outros?, que fase, até quando a gente dá certo é porque deu errado, você diz que nós estamos desenvolvendo alta tecnologia na área do discurso oficial cínico, o famoso me enganation que eu gostation, e tu teve esse insight incrível assistindo o 7 a 1 da Alemanha no ano passado, vocês não vão traduzir essa bagaça, certo?
― Ok, esto uma issue que preocupa, brasileiros tem elevada sensibilidade com opinion ajena, mas todo western world pode estar sufriendo um gran cambio narrativo, quando eu assisti um broadcast de americana grande rede television do 9/11 em vivo, escuché que Satan´s face se podia veer em las llamas de una de las Torres Gémelas caídas, em este momento percebi que las fuerzas del império no más fingiam utilizar discurso de la razón, foi momento de enormous debasement de lenguaje em gran escala. De então pra frente, vem estudiando evolução deste degradación do narrativa ocidental, que precisa buscar nos llamados países emergentes, o fringe do sistema. Esse cara nunca fala, bro?
― Relaxa, Uzo, o Tomate é sangue bom, molho bolonhesa, só ficou um pouco mais calado depois que passaram o carro em cima dele, ele agora padece do mesmo mal que você: essa insuportável mania americana da sinceridade brutal, eu sou o seu personagem? ― realmente era um espanto, Uzodima, mesmo sendo filho e neto de afroamericanos emergidos da ação afirmativa, não deixava de apresentar essa tara wasp pela verdade.
― E você, irmãozino que me aluga cafofo, é mais complete personificación deste homo post post modern dystopian, você é uma pessoa, interrupted. Onde tiene comida saudável around?

sábado, 31 de outubro de 2015

como ser feliz sem o autoengano (carta anônima)








se existe uma verdade
é a de que desistimos
de quase tudo


seguimos sonhando entre os rochedos
do tédio e desespero


pequenos retratos da vida
flutuam diante dos dias
como promessas
fantasmas


que caçamos quando crianças
nas frestas das portas


nunca prendemos a poeira
luminosa


mas nunca perdemos mais
que poesia
e portas


domingo, 25 de outubro de 2015

os culpáveis (2)




            ― Pai, você acha que o Dingo é feliz?
            ― Bem, não sei dizer com certeza se ele é feliz, mas uma coisa é certa, essa bola de pêlos tem de mão beijada tudo que os outros correm atrás: casa, comida, cuidados... os caras do zoológico até lhe arrumam namoradas ― Ava, futura agente da CIA, habitualmente me interroga com a sanha de um juiz da Lava Jato, por sorte, tinha um trabalho escolar para distraí-la, daí a visita ao Dingo no zoológico, onde vamos parar enchendo a cabeça de crianças de 6 anos com ecoapocalipses e a reprodução desses bichos de pelúcia gigantes?, a baixinha é osso, melhor erguer a guarda, peguei uma mãozada dos Cheetos que minha ex baniu da dieta da menina, deve ser por isso que a criançada hoje é tão ligeira: proíbem a comida trash, mas liberam o computador e a convivência com adultos sem noção.
            ― Só existem mais 1864 ursos pandas no mundo todo. Eu ia achar muito triste ser uma das últimas pessoas da Terra.
            ― Ok, filha, sei que não é culpa sua, mas os seres humanos não têm feito um grande serviço neste planeta, talvez o mundo fosse um lugar melhor cheio de ursinhos fófis em vez de gente.
            ― A mamãe diz que você é um bicho em extinção, que todas as suas namoradas acabam te odiando e que pagam pra você escrever mal. Você não aprendeu a escrever?
            ― Ela disse isso, foi? Olha, a escrever eu até aprendi, a ler também, o que nunca aprendi foi a pensar, a organizar as idéias e a vida, vai ver sou uma daquelas pessoas que deviam ter vindo panda, talvez assim, ao contrário das minhas namoradas, você gostasse de mim pra sempre.
            ― Mas eu sempre vou gostar de você, mesmo a mamãe e a vovó falando ― encheu a boca de salgadinhos ― pra mim você é o Homem Panda: grande, peludo e engraçado.
― Hahaha, a pança do Shrek e do Homer eu já tenho, só faltava o Kung Fu Panda...
― Por que as suas namoradas mudam toda hora, papai?
― Certo, Mata Hari, não se pode esconder nada de você por muito tempo, acontece com elas, e um dia vai acontecer com você também: meninas gostam de brincar de princesa e adoram unicórnios e bichos fofinhos, mas um dia descobrem que a floresta tá cheia de lobos maus, e nessa hora é melhor ter do seu lado um caçador forte que não tenha medo de dar uma machadada na barriga do lobo, as moças gostam do Homem Panda, mas depois se cansam do ursão preguiçoso que passa o dia dando cambalhotas e roendo bambu.
― Sabia que quando nascem gêmeos as mães só cuidam de um dos filhotes? ― Ava fazia sua parada tradicional na frente do mico-leão de cara vermelha.
― Quem, os micos?
― Não, os pandas. Na Olimpíada, a China vai mandar um casal deles pro zoológico do Rio de Janeiro. Você me leva pra ver?
― Claro, Ava, até lá acho que consigo ganhar na loteria, ou ainda melhor neste caso, no jogo do bicho.
― Verdade que tem um mendigo que mora com você?
― Sabe o quê?, sua mãe tem um jeito de dizer as coisas que torna elas piores do que são, na verdade o Tomate é um amigo, ele não tem família e tá passando uns tempos lá no meu cafofo, coitado, deu azar na vida, teve um acidente e bateu a cabeça, ficou meses no hospital e quando voltou esqueceu quase tudo que sabia, o que você tem que dizer pra sua mãe é que ontem chegou um gringo lá em casa, o Uzo, um americano que vai arrumar trabalho pro papai, assim eu pago a sua escola e a mamãe não vai precisar praticar a alienação parental com tanta freqüência.
― O Uzo é um urso?
― Hehe, quase isso, só esqueceram de pintar as manchas brancas nele pra ser um panda, mas é um cara muito importante, e também raro: um jornalista empregado, não esqueça de contar isso pra mamis porque senão ela manda o ursitcho vegano do seu pai pruma jaula cheia de ursões ferozes.
            ― O que é alienação paredal?
            

quarta-feira, 21 de outubro de 2015

os culpáveis (1)




            Ou seja, bem feitas as contas, na real mesmo à vera, as coisas são sempre mais parecidas que complicadas, é como aquele caso da faxineira presa por roubar um bombom trufado da mesa do delegado, toda história tem pelo menos dois lados: o da trufa e o de fora, pois bem, na cobertura de chocolate da minha vida corria a parada com o jornalista americano que fazia surf no sofá do meu honorável muquifo, mais sofá do que surf é verdade, mas ainda assim era um contato internacional, um cara com coluna fixa na Transmetropolitan, “a” revista cybermod dos isteites, pouca merda não é, convenhamos, nem pouco peso: Uzodima Iweala é, ou era, um afroamericano de trocentos quilos, do quais uns cinqüenta só em dreads dourados escorrendo da cabeça oval, infalivelmente vestido como um babalorixá do Malaui e responsável pela quebra da minha cama um ano antes quando veio cobrir a Copa das Copas, vou morrer achando que o enrosco da faxineira seria bem menor se não fosse a trufa.
            Vamos tentar organizar a quizumba, já perdi a conta dos editores que surtaram tentando organizar a diarréia hegeliana de orações subordinadas nos textos com distúrbio de atenção que me sustentam no nível do Bolsa Família (tenho (tinha) um frila sem nota, razoavelmente fixo, numa revista de viagens, mas isso não vem ao caso agora), pause, volta o filme: cinco minutos antes o telefone de casa tocou, pânico, vertigem, procrastinação, quem ainda liga pra fixo neste planeta?, só telemarketing, agiota, ou parente com notícia de morte, quem na família estava no bico do corvo?, bem, tenho uma tia em no interior com erisipela ― dá pra morrer de erisipela?, antes de conseguir dar um googlada, o telefone tocou pela vigésima vez e então achei que três da tarde de um sábado é uma hora como outra qualquer pra alguém te acordar e foder seu dia, o partido do autoengano no meu pensamento nublado insistia em apostar numa ex que apagou meu contato, esqueceu o quanto me odiava e acontecia estar precisando desesperadamente de um pau amigo.
            ― Hello, sou eu, Uzodima. Tava cagando, yo?
            ― Fala, grande Uzo, isso é hora de quase me matar do coração? Já tava vendo minha tia morta em Araras...
            ― Arrarras? Tia morta? What a fuck... cheirando de novo, bro?
            ― Esquece, a fita é longa, ningué morre de erisipela, mas fala, cara, que horas são aí agora?
            ― Doze minutos... passado três PM.
            ― Puxa, a hora daí tá que nem aqui: quinze e pouco.
            ― Claro, porra, estou em frente seu prédio!
            ― Caraca, mano, não me avisou por quê?
            ― Porque você não responde cell phone ou e-mail.
            Uzo tinha razão, passei as últimas semanas evitando o mundo depois de assinar a reportagem de uma das muitas viagens que nunca fiz, numa barriga em que não fui o menor dos Inocêncios, novo organizador dos fatos: a edição especial sobre o Tahiti da revista Trips and Travels ostentou uma deliciosa crônica nas areias brancas e águas azul turquesa de... Turks and Caicos, grande merda, Caribe, Polinésia, quantas pessoas neste país sabem a diferença?, os caras não me pagam nem uma diária na Cidade Ossian e ainda querem que eu ache inspiração no Parque da Luz pra escrever sobre lugares estilosos munido de encartes coloridos e prazos exíguos, acabou que grana não vi e os caras só não me demitiram porque nem contrato havia, vida de pejota é andar no arame, camelar o perrengue pra sempre, computando os prejuízos dei por perdida a verba do aluguel (já atrasado em 3 meses) e a pensão da ex (também atrasada), ou melhor, da minha filha Ava, com ela me entendo numa ida ao zoológico, mas a mãe não vai perder a chance de me mandar pruma cadeia onde um bando de meliantes faria o seu melhor pra transformar meu reto num cano de 3 polegadas, como são as coisas: as vigas mestras da maçonaria da minha existência ameaçavam desabar, e, de repente, vindo do Norte maravilha, lá estava a solução dos meus problemas: um gringo recheado das doletas que me faltavam, trabalho e liberdade, isso é a América, e também o lema de Auschwitz, acho, vou dar uma googlada.

            

sexta-feira, 9 de outubro de 2015

vida de espião




desço a rua no fluxo
de outros flanando em fim de tarde
aceito tudo que não sou
rogo lágrimas à multitude
ao grupo de skatistas furiosos
chego a amar
o mendigo tatuado de mendigo
carrego coisas em mim
que ainda não sei perguntar
a atriz me oferece mangas da cesta que carrega
recuso
ela me dá um guardanapo de papel
escrito a caneta rosa em letra de forma:
"No Brasil, o número de estupros
supera o de homicídios dolosos"
então penso que o estupro começou
há muito tempo
tento ser alguém e estar vivo
esqueci o sentido da vida
e quando o reencontrei não cabia
no biscoito da sorte chinês
acho que já deveria saber que uma coisa
não leva necessariamente à outra
até porque hoje não há mais missões
só nos resta a vida doméstica
li em algum lugar que as pessoas felizes
não se comparam com as outras
nem se culpam pelo que não podem
resolver
o que eu mais queria era ser feliz
sem ser babaca
e morrer um dia despido do
medo
ou daquela sensação de ter desistido
da parte mais importante
de todas


segunda-feira, 28 de setembro de 2015

a menina sentada (final)



Haverá decerto coisas piores na infância que o momento no qual descobrimos nos pais a incapacidade não só de cuidar de nós, os filhos, mas também deles mesmos ― disso, felizmente, só restam traços, não memória. Do que sim lembro bem foi a chegada naquela casa: meu pai era a própria imagem do homem perplexo na derrota, abandonado com três filhas pequenas para criar. Mudamos às pressas para o sobradão requenguela logo depois que mamãe fugiu com um caminhoneiro, na casa da nossa falecida avó ele talvez esperasse livrar a família daquela doença contagiosa. A vergonha.
― Você tá vendo as gracinhas dela? Foi assim que tudo começou.
― Ela era só uma menina, e nós mais ainda...
― Sempre defendendo ela, né? Claro, você é a boazinha, cheia de compaixão! Mas pra mim a danada sabia muito bem o que estava fazendo: ficava desse jeito se balançando, horas e horas. Possuída, diziam.
Dormíamos sobre estopas num quarto sem luz em que as tábuas do assoalho gemiam à noite, aliás, como tudo naquele edifício cansado. Na escola, apontavam-nos ao longe, as outras meninas diziam que as mães proibiam de convidar a gente pra brincar na casa delas. O povo da cidade nos chamava de Filhas da Diaba. Papai passava o dia bebendo nos botecos, voltava tarde, tropicando pela escada até desabar na cama vestido, cheirando a mijo e morte da vovó. Durante muito tempo não tínhamos sequer uma garrafa de água na cozinha.
― Em vez de ficar falando mal da nossa irmã, bem que podia me ajudar a fechar as janelas. Não tá vendo a tempestade chegar?
As nuvens carregadas haviam se deslocado rapidamente, engolfando todo o horizonte visível. Exércitos sobrevoando o ruído branco da cidade. Corri em vão a fechar as janelas, a névoa invadiu a sala com seu manto gasoso que não se desfazia em chuva ou garoa. Nada se decidia.
― Esta é você: a tarefeira, a que sempre resolve tudo. Inteligente e fofa, uma graça de pessoa! Quer saber?, nunca houve esse “nós” que você tanto fala!
― Olha, se não quer ajudar, pelo menos sai da frente. De que te adiantou ser bonita? É amarga, parece que só vê o lado pior das coisas.
― Ela é que era, a mais bonita e inteligente de nós... fingiu-se de louca pra trazer mais desgraça pras nossas vidas. Mas a vida é assim: ela é cruel, e te mata no final.
Nunca consegui entender o perigo que tanta gente de bem enxergava em nossa família pobre e destartalada. Pode ser que fôssemos muito azarados, isso costuma apavorar os honestos cidadãos. Às vezes penso que eles é que sempre estiveram certos: talvez houvesse mesmo a parte da maldade no nosso sangue, passando intacto e geração para geração. O fato é que o pastor resolveu tomar para si a missão de exorcizar minha irmã mais velha, passavam horas juntos rezando.
― Aposto que foi desse jeito que ela enlouqueceu aquele homem: levantando a saia pra ele...
― Como é que tem coragem de dizer...? Ela tinha só onze anos! Estava assustada, como eu e você, perdida... nós só estávamos perdidos!
― Foi de caso pensado, ela deixou o pai saber o que acontecia nas tais sessões... Atraiu os dois pra arapuca, papai matou o monstro errado!
Sentia novamente o cansaço do mundo, não conseguia deter a torrente de ódio da minha irmã, a fumaça macilenta ocupava todo o apartamento, a menina não parava de se balançar e atirar pra trás, machucando a cabeça na parede. Voltei para o quarto, quem sabe dormindo aquilo tudo passaria. Achei-me deitada exatamente como antes, mas agora a menina estava sentada na beira da cama.
Sabia que não iria embora, tinha vindo pra ficar, estivera ali o tempo todo.


quarta-feira, 23 de setembro de 2015

a menina sentada (3)




            A sensação era de lidar com uma rima de toras rolando umas sobre as outras, uma pilha de lenha instável agrupada sem lógica por mãos apressadas. Cada pequeno movimento, a menor sacudidela, mesmo a mais imperceptível, e a geringonça ameaçava desabar. Todavia, esta ainda era uma sensação pouco clara, não havia nada de casual em todo aquele castelo de cartas: somente a história secreta, a voz das paredes e do vento, o sussurro das folhas carregadas pela viração, o reencontro do antigo e do novo improvavelmente.
            Uma história de resíduos. Depositada em estratos. Feita de tudo aquilo que não se pode contar.
            ― Você ao menos podia ter poupado os meus morangos, sabe o quanto eu gosto e...
― Poupar, poupar... Nunca vai acabar essa lenga-lenga? Os tempos mudaram, mana, nós saímos daquele buraco.
― Mesmo? Às vezes tenho a impressão que algumas coisas se perdem, e outras, não acabam nunca.
Reparei que o horizonte, para além das janelas da cozinha, se preenchia de gigantescas nuvens escuras.
Definitivamente, por mais turbulento e caótico que tenha sido um começo de vida, ele se transforma com o tempo em souvenir de uma infância inexistente, e, enquanto tal, passa a ser partilhado por essa outra comunidade fictícia: os irmãos, de sangue ou criação, os mortos e os vivos.
Consegui que ela me acompanhasse até à sala, mas não antes de finalizar a travessa inteira das frutas. A menina continuava lá, sentadinha no sofá como a deixara, porém seus movimentos haviam mudado. Agora balançava a saia, que pegava pelas bordas do regaço, levantando-a ao nível da cabeça revelando o sexo impúbere.
― É a própria, a mesma biscate de sempre. Não mudou nada.
Fiquei indignada que falasse assim de uma criança, ao mesmo tempo, percebia o quanto era impróprio para a idade o gestual da menina. Quis repreendê-la, mas temi que o castigo atiçasse ainda mais o crime, como se a enunciação do pecado o fixasse a jamais na memória de quem talvez ignorasse a extensão das suas culpas. A hesitação, imagino, que sentem alguns antropólogos ao fazer contato com indígenas isolados da nossa barbárie civilizada.
Não conseguia também tirar os olhos daquela vagina que se oferecia em intervalos de visibilidade e ofuscamento: lisa, rosada, a penugem lívia, sem as pregas que os anos, os hormônios e o desejo imprimem aos lábios internos. Desviei a atenção para um sofá revestido de curvim cujo forro de espuma branca apontava para fora no canto descosido. Imediatamente, o pensamento se acendeu como um letreiro luminoso na minha cabeça; “Ainda a sinto em mim”.



quarta-feira, 16 de setembro de 2015

a menina sentada (2)





            Gozado como isso me importava tão pouco naquele momento, estava mais preocupada com o paradeiro da minha irmã: não a via nem ouvia em lado nenhum, mas distinguia sons estranhos vindos da cozinha. Como se estivessem jogando todos os utensílios ao chão.
            — Onde você está? Já acordei, tô pronta.
            Silêncio completo.
            Saí a paso doble em direção à área de serviço, e foi então que a vi, ou melhor, senti. Dei um giro em câmera lenta no centro da sala. Antes mesmo de me virar, sabia que ela estaria lá. Sentada no sofá do living, muito direita, os braços largados ao longo do corpo, as mãos apoiadas no assento ao lado das pernas descruzadas e inquietas.
            Quase machucava a maciez esbranquiçada da pele em contraste com o veludo adamascado da roupa, as pernas finas enfiadas em meias brancas e sapatinhos envernizados de boneca, os cabelos negros presos numa tiara de cor igual ao vestido. O ar de bicho enxotado, um pequeno ser repleto de medos absurdos e coragens bobas.
            — Deixa eu te ajudar, acho que... bom, esquece.
            Nem sabia o que estava dizendo, apenas reagia a torrentes de afetos com o que conseguia reunir de doçura gratuita. Ela não respondia, apenas ficava ali, balançando o tronco e as pernas. Às vezes atirava-se de cabeça pra trás, como fazem os bebês.
            Aquilo me desconcertou, não conseguia impedir seus movimentos nem argumentar com a garota. Divaguei. Fixava a tinta branca da parede, descascada por alguma infiltração de umidade, que parecia a ponto de se romper. “A natureza vai entrar na sala”, pensei.
            — Olha, me espera aqui, não sai. Vou buscar minha irmã ali na cozinha e a gente prepara uma coisa gostosa pra você.
            Sim, essa era uma boa idéia: pedir ajuda a alguém, alguém que descobrisse alguma saída, ou, que pelo menos tivesse um pouco mais de sangue-frio diante daquela situação. Normalmente não deposito tamanha esperança numa pessoa da família, mas sempre seriam duas cabeças a pensar em vez de uma.
            Duas cadeiras de plástico, frente a frente, separadas por uma mesa com tampo de fórmica, em cima do fogão, igualmente desoladas, duas chaleiras. Afora estes objetos, tudo estava revirado na cozinha: as gavetas arrancadas, os talheres espalhados pelo chão, as travessas e caçarolas em desvario, como se cada coisa inanimada houvesse despertado do seu sono e voltado à vida.
            Minha irmã ao lado da geladeira, com a porta escancarada, devorava uma taça de morangos ― ela sabe muito bem que esses morangos são meus, não me importo que ela se sirva de qualquer outra guloseima. Menos essa.
            Para minha surpresa, já sabia.
            ― Sim, eu vi. Por que tanta surpresa? Ela esteve lá o tempo todo, sempre vai estar. Não podemos fazer nada quanto a... o que está feito, está feito.

            

sábado, 12 de setembro de 2015

a menina sentada (1)




          Cheguei em casa meio cedo. Tinha um monte de outras coisas a fazer naquela tarde, mas combinei com a minha irmã e ela já estava lá me esperando. Estava muito cansada, como ultimamente sempre estou, aliás, nos últimos tempos não venho sentindo nada além disso. Cansaço.
          — Só preciso de uma meia horinha de sono.
          — Você está pálida, tudo bem?
          — Um pouco de tontura, vai passar.
          Só sabia que precisava dormir um pouco. Descansar.
          A cabeça parecia aumentar de tamanho, dilatava e encolhia feito um balão, pesando. Abaixei as persianas, fechei a porta do quarto e deitei vestida sobre a cama. Um zumbido fino persistia no ouvido. Dormi de repente um sono como de tardes chuvosas, como antigamente, quando eu sentia mais do que pensava.
          Mas não chovia, lembro da minha irmã espiando dentro do quarto e dizendo algo sem que pudesse entender as palavras. Era já o mundo do sono e seus abismos sem explicação. A porta se fechou novamente, uma onda de alívio se espalhou a partir do meu peito.
          Enfim, só.
          — Uma hora deu. Você tá bem?
          Levantei-me, alisei a roupa, ajeitei os cabelos, esfreguei o rosto sentada na beira da cama.
          — Já vou. Tô melhor, obrigada.
          O barulho de um gaveteiro caindo.
          Não havia necessidade de acender a luz, conhecia todos os caminhos daquele cômodo. Caminhei no escuro até à porta, abri, corri os olhos pela sala vazia acostumando com a claridade. Ao fechar a porta atrás de mim, reparei que ainda estava na cama.
          Deitada.


          

domingo, 2 de agosto de 2015

O PROCESSO





Sem querer
eu chorava o que não sentia
eu falava do que não sabia
e inventava

mas um dia
o acaso chegou sem aviso
e as coisas ficaram verdade
e eu calei

desde então
todo dia é apenas um dia 
toda noite apenas  uma noite 
e eu sou apenas.

sexta-feira, 26 de junho de 2015

os transformistas



não
nem mesmo a chuva
antes
o cheiro depois da chuva a suar
da pedra

eu posso sentir vindo muito
no ar
subitamente espesso antes do
furacão

em todos os lugares inconformistas
alguém entende acende
um
na ciranda dos boçais

posso ver a transformação um espaço
breve no tempo
onde o cidadão pode ser contra
o estado, a família, Deus e a puta
que o pariu

alguns dizem sossega Carlos estes ventos são
de granizo
chuvas de verão garoa
passageira

mas
fazer o que se ainda ouço antigas canções
LIVE FAST DIE YOUNG

se ainda acredito
sim
somente a chuva
tem mãos assim tão
suaves




quarta-feira, 24 de junho de 2015

Reality (final)


INT. SALA DO MÉDIUM. NOITE.

Pai Serafim acha o cartão que Caubói deixou cair. Pega o celular e liga.

INSERT TÍTULO: A Harmonia dos Terapeutas

INT. SALA DO PSICANALISTA. NOITE.

Psicanalista atende o celular.

PSICANALISTA
Sim, entendo a sua preocupação, mas não vejo o que eu poderia fazer quanto a isso.

INT. SALA DO MÉDIUM. NOITE.

PAI SERAFIM
Achei que o senhor dava uns sossega-leão em caso brabo assim. Tive um pressentimento, esse Caubói não tá regulando bem das dobradiças mentais...

INT. SALA DO PSICANALISTA. NOITE.

PSICANALISTA
Ninguém que procure os meus ou os seus serviços regula bem. Você trabalha com o futuro, já eu tenho que me ater ao que acontece aqui e agora na sessão. Da porta pra fora, é com ele.

INT. SALA DO MÉDIUM. NOITE.

PAI SERAFIM
Mas, falando de homem pra homem, não acha um tremendo desperdício o que esse rapaz tá fazendo com a grana, a juventude, a vida?

INT. SALA DO PSICANALISTA. NOITE.

PSICANALISTA
Olha, na verdade, foi pra mim um tremendo esforço me abster de julgar o que os outros fazem ou deixam de fazer com a vida deles. De novo, a diferença entre nós reside no fato de eu não tentar mudar os fatos.


INT. SALA DO MÉDIUM. NOITE.

PAI SERAFIM
E se ele der mesmo cabo da vida?

INT. SALA DO PSICANALISTA. NOITE.

PSICANALISTA
Decisão que cabe unicamente ao Caubói. É natural, num mundo super-povoado, que alguns se sintam a mais.

INT. SALA DO MÉDIUM. NOITE.

PAI SERAFIM
Ok, entendi, a gente vê o mundo de maneiras muito diferentes. O senhor há pouco falou de futuro, pois o que eu consigo ver chegando não é bom...

Pai Serafim se aproxima da janela.

INT. SALA DO PSICANALISTA. NOITE.

PSICANALISTA
Veja bem, a previsão do tempo pra hoje é de chuva, mas quem GARANTE que isso ou qualquer outra coisa vai acontecer?

Psicanalista se aproxima da janela da sala. Pingos molham os vidros.