terça-feira, 30 de março de 2010
Mário, o cosmo inteiro saiu de dentro de uma caixa preta
homo sapiens
mas implacável é também o demônio
da kultur
entesouras & avaro amas
pródigo do mais-gozar
a esconder o vinho
a guardar o chá
apoucando as
visitas
fascista passivo
sindicalista do evangelho empresarial
pedófilo de esquerda
anti-marquês da panáquia
pouco importa que sejas um deformado
num mundo deformado
numa urbe de rios cimentados
studios piercing
call centers de telemarketing
estações de trem caldeiras churrasco-na-laje
desassossego lan houses
o futuro bebe o sangue do profeta brinda
sobre o túmulo das belas
tolas esperanças
a memória sofre de erosão
o jogo perdido
de antemão
por que então os dados
viciados?
teu hard disk
apega
se
a um objeto esquecido pequeno nada
grau zero
biográfico
quem no deserto
prega
toma poeira vento
tempestade come
lacraia escorpião
besouros
quem a tudo/todos
abjura
do semelhante
difere
abandona, Pereira
o melhor é ficar fora
de si
domingo, 28 de março de 2010
rimas pobres para um beija flor roubado
terça-feira, 23 de março de 2010
domingo, 21 de março de 2010
SÓ DE VEZ EM QUANDO
Só de vez em quando,
(quando muda a lua)
eu grudo a minha boca na tua orelha,
E sussurro besteiras
(obscenidades)
mio, gemo e urro feito besta-fera,
Mas, só de vez em quando,
(eu dou de mariposa)
de mulher de bandido e peço pra apanhar,
Aceito as carícias
(mais despudoradas)
como se eu fosse flor e fosse primavera.
foto: Marcelo Grassmann
elinfanta
diferença tal
que falar
é cessar
de pensar
visando à
unidade
fazer
das relações
entre palavras
um campo
dissimétrico
dar palavra
ao intermitente
ao não-uno
poetizar
a palavra não-ponte
não-passagem
palavra não
pontificante
capaz
de ultrapassar
as margens
que o abismo
separa
sem reunir
sem referir
uma (possível?)
-nidade
apenas sinalizar
o
des
conhecido
_________________________
Foto: Fábio Ghrun, 2009.
um manicômio privado que se chama família
é a estupidez
o problema é que não há loucura
onde não houve
maldade
o tolo aposta suas chances na loteria
do acaso
o sábio toma do azar
as oportunidades
o louco pode fazer qualquer coisa
o idiota só
uma
de vez em quando é bom mudar
de idiotia
porque as paixões mudam
mas a paixão
nunca
.
.
.
________________________________________
Sem título. Cleuza de Sousa, técnica mista, 2005.
sábado, 20 de março de 2010
O Beijo
Toda coberta de negro, Maria Dolores caminhava lentamente, pesadamente. Nos olhos acumulavam-se águas que, de repente, sumiam num curto pestanejar. Ninguém lhe conseguiu ver uma lágrima rolar pelo rosto.
Aos cinquenta e dois anos, era uma senhora respeitada na aldeia.
Todos lhe conheciam a vida que tinha passado junto do marido, agora falecido.
O Manuel era homem de trabalho, honesto, respeitador e a sua palavra valia ouro. Não se metia em desvarios, não bebia nem tinha vícios que se lhe conhecessem.
Homem capaz de dar a camisa a quem dela necessitasse, cristão de missa de Domingo e dias santificados.
Eram de contas direitas, viviam folgadamente, ainda que sem luxos. A Isabel, que era a mais nova, tinha estudado e era professora primária. Dava aulas numa aldeia vizinha, porque na terra já há muitos anos se fechara a escola, por falta de crianças.
O filho, Marco, tinha desistido de estudar quando terminou o 12º ano. Na altura, correu pelo povo que o abandono tinha a haver com uma zanga com o pai, mas isso tinham sido vozes... Da boca dele, nunca ninguém ouvira justificação, muito menos o senhor Manuel dava azo a que abordassem o assunto. Passados uns meses tinha ido para França, trabalhar com um primo que já lá estava. Desde então, ainda não voltara uma única vez à terra natal.
O Manuel casara com a Maria Dolores, já homem feito. Na altura, levava à mulher mais de vinte anos. Ela, com dezasseis, tinha-se perdido de amores por ele e, bem antes dos noves meses de preceito, nasceu o Marco.
O parto não foi fácil porque, dizia a Ti Guilhermina, o rapaz vinha revirado.
Depois daquela noite de padecimento, Maria cuidou do filho, que tinha vindo ao mundo fracote, como se nada mais existisse.
O rapaz lá vingou, forte.. graças a Deus e Nossa Senhora... como costumava dizer a mãe.
Também... mimos não lhe faltavam... era o ai Jesus da Maria Dolores.
Se calhar devido à dificuldade do parto, o certo é que durante uns largos cinco anos a Maria Dolores não voltou a alcançar outra gravidez.
E, segundo ela, tal só aconteceu por ter feito uma promessa à Senhora de Fátima.
Lá para o fim do tempo, a Maria Dolores só pedia à Senhora que o parto não fosse igual ao do Marco. Até tremia só de pensar naquilo.
Quando deu à luz, tudo correu pelo melhor. O Manuel, que tinha andado aflito com aquela história toda, ficou radiante quando a Ti Guilhermina lhe veio dizer que já tinha uma filha.
As coisas começaram a ficar mais equilibradas lá em casa.
Enquanto o Marco era o ai Jesus da mãe, a Isabel passou a ser o ai Jesus do pai.
Para ver o Manuel feliz, bastava que a Isabel fizesse qualquer travessura. Quando disse a primeira palavra ninguém estranhou que tivesse sido - papá...
Pai mais babado não se conhecia.
O tempo foi passando.
O Marco, que no início nem tinha achado grande piada ao facto de ter uma irmãzita, foi ganhando um carinho muito especial à “minha Bel”, como lhe chamava.
Aos poucos, foram-se criando entre os dois irmãos laços tão estreitos que dava gosto vê-los juntos.
O senhor Manuel começou a sentir-se posto de lado pela Isabel. As atenções da miúda só iam para o irmão. Marco para aqui... Marco para acolá...
No entanto, cada dia que passava era maior o orgulho que sentia por aqueles dois filhos.
A vida corria sem grandes sobressaltos. Trabalho não faltava na serração de madeira de que era dono. Tirando um ou outro atraso de alguns clientes, o negócio não andava mau de todo. Olhando para o filho, começava a imaginar o futuro. Tinha que levar a serração para a frente de forma a, chegada a idade, poder entregá-la ao Marco.
A Maria Dolores, quando lhe falavam nos filhos, até os olhos se lhe riam.
Não eram crianças de dar aflições. E, em caso de precisão, bastava pedir ao Marco que tomasse conta da irmã. Era serviço garantido e não precisava de se preocupar. Ainda hoje se ria de cada vez que se lembrava do que acontecera daquela vez que tinha pedido ao Marco para tomar conta da “Belinha”. Ela tinha de ir à loja do senhor Francisco. Quando voltava, rua acima, ouviu um burburinho. O coração deu-lhe um salto. Estugou o passo e o que viu ela? A Isabel chorava como se a estivessem a matar. O Marco à luta com dois miúdos, bem maiores do que ele. Largou o saco no chão e correu. Chegou ao mesmo tempo que a mãe do Joaquim, um dos rapazes. Cada uma delas agarrou na orelha do filho e lá conseguiram separá-los. O Marco estava esfolado num joelho e tinha um cotovelo a sangrar. Quando lhe perguntou qual a causa da bulha, o Marco, a choramingar, disse-lhe que os rapazes tinham tirado “à minha Bel” um pedacito de bolo. Como ela começara a chorar, ele não esteve com mais...
“ Fui-lhes òs focinhos , mãe”
Na época, o Marco andava pelos oito anitos e os outros dois já tinham mais de treze.
O povo até costumava dizer que há crianças que não largam a saia à mãe, mas que a Isabel era diferente... andava sempre agarrada às calças do Marco.
Aos doze anos, a Isabel começou a transformar-se numa mulherzinha. O Marco, com dezassete, foi apreciando as mudanças na sua irmãzinha.
A Isabel continuou a agir como sempre fizera. Quando lhe dava na gana, agarrava-se ao irmão e, se para aí estivesse virada, repenicava-lhe um beijo na cara e... depois outro na testa.
Como tinha menos que estudar sobrava-lhe tempo. Nessas alturas ia até ao quarto do irmão. Sentia-se tão bem junto do Marco que ele tinha que a por do quarto para fora.
Muitas vezes a Isabel pedia ajuda ao Marco para resolver um trabalho de casa ou para tirar uma dúvida. Ele sempre tinha sido bom aluno e gostava muito de poder ajudar a “Bel”...
Um dia a Isabel chegou a casa e foi direita ao quarto do irmão, que estava a preparar-se para as provas do 12º.
Encostou a porta e, em voz baixa, meia sem jeito, perguntou-lhe se ele tinha um tempinho para falar com ela.
Marco estranhou o comportamento da irmã. Olhou para ela. Quase ficou admirado pela beleza da Bel. Não havia maneira de se habituar a vê-la transformar-se a cada dia que passava.
- Diz lá...
- Vais-te rir de mim...
- Hmm... que é que andaste a fazer?...
- Oh...
- Estava a brincar... anda cá...
A Isabel, alta para os seus treze anos, aproximou-se do irmão e sentou-se junto a ele.
- Queria-te perguntar uma coisa...
- Sim...
A Isabel virou-se para ele e... ali ficou a olhá-lo nos olhos...
- Posso dar-te um beijo?...
Marco não estava a perceber o que se passava... ou, melhor, já tinha percebido que a irmã queria alguma coisa mas estava a desconversar.
- Queres um beijo? É para já...
Marco inclinou-se e ia dar-lhe um beijo no rosto mas, a Isabel parou-o.
- Não... assim...
A Isabel colocou-lhe a mão na face e aproximou os lábios dos de Marco.
Paralisado, ele sentiu-a chegar-se a si. Como se o tempo corresse muito devagar... devagarinho... Marco sentiu o toque.
A Isabel ficou assim, de lábios nos lábios, olhar fixo nos olhos do irmão. Lentamente, foi fechando os olhos...
Marco continuou paralisado... nem respirava... o coração latindo...
De onde estava pode ver a porta a abrir-se.
Em câmara muito lenta... surgiu, aos poucos, a figura do pai.
O senhor Manuel... olhou mas não quis acreditar...
Petrificado que nem uma estátua, foi perdendo as cores... ficou sem pinga de sangue.
A mão continuou agarrada ao puxador da porta... os dedos ficaram brancos de tanto apertar.
Por fim, moveu-se.
Devagar... puxou a porta.
Alheia ao que acontecera, Isabel abriu os olhos e quebrou o beijo... o seu primeiro beijo.
******
Quando Marco arranjou coragem para ir falar com o pai esbarrou na incompreensão total. O pai recusou-se a acreditar no que ele contava.
No dia seguinte, pediu ao pai para lhe arranjar qualquer coisa, bem longe.
Foi para França e nunca mais voltou, nem quando soube que o pai tinha morrido.
Informação: qualquer semelhança com cenas e personagens da vida real será, certamente, mera coincidência.
domingo, 14 de março de 2010
Meu Diadorim
sexta-feira, 12 de março de 2010
quinta-feira, 11 de março de 2010
O desejo
do sonho é poder
acordar
quem dorme na vida
Como aconteceu recentemente
abriram
todas as minhas portas
no embalo
dos infinitos problemas da nossa rede
de conexão
O mais perturbador
(não sou um tipo intolerante
às quebras
de normas)
foi a silenciosa mas completa
disjunção
entre as situações seus tempos e seus
ruídos
Estas
as verdadeiras invasões bárbaras
indivíduos
que por falta de pausas em seu cotidiano
delirante
não escandem o murmúrio
dos fantasmas
as preces dos moribundos os lapsos
o vazio
Vieram
dizer a um cara
que a enchente tinha levado o carro dele
respondeu
impossível tenho aqui no bolso
a chave
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Aquarela de Jotacah Rolando, "Madona"
terça-feira, 9 de março de 2010
sábado, 6 de março de 2010
poesia não cede
nem cedo
de
pura
eu
muitas vezes via
a ínvia
impossível vida
e você a me dizer
apura
no plantio da sensimilla
o chulé verbal
dos vãos trocadilhos
e nessas o poeta
submerso em bruxarias
sua
para pagar o condomínio
sua luz bruxuleia
incerta
seu andar de sátrapa
e os carnês todos atrasados
ainda assim
poeta que é poeta não abandona
existe de pura
teimosia
homero sexual
humilhado
pela nossa cegueira
sem nada
ou ninguém que o valha
o velho lear
insiste
enche o saco de meio mundo
em êxtase
diz a todo momento que poesia é acidente
uma forma rara
do lugar
comum
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"Narciso, quiçá São Sebastião" de Jotacá Rolando
quinta-feira, 4 de março de 2010
espelho de milagres (you're my wonderwall)
os segredos da vida
um escape da consciência
a disciplina da escuridão
reconheci
atuando na existência
um espelho de milagres
que havia
no teu espírito
meu coração
videntes antigos
previram:
quem corre com o tempo
morre para a eternidade
você reinventou
os abismos
o divino
o caos, a ilusão
corporificando
o transitório
o espólio da senhora Maeda (parte 1)
OS AMIGOS:
Rafael é um financista, investidor com interesses nos empreendimentos de alta tecnologia; ele mesmo tendo sido empresário e inventor de um sistema revolucionário de controle de estoques e distribuição no ramo da logística. Ex-obeso mórbido, perdeu 46 kg no último ano e meio após uma cirurgia bariátrica. Nunca se casou, não tem filhos e mora com o irmão mais novo e uma tia.
Pedro está prestes a mergulhar de cabeça no 5º casamento (que na verdade é a retomada do 2º), tem 3 filhos e uma contenda jurídica pela guarda do terceiro filho, fruto do 4º e, até agora, último casamento. Antiquário de profissão, toca a empresa fundada pela mãe, falecida há 4 anos; herdou do pai a paixão pelo antigo-mobilismo e tem a maior coleção de Pumas conversíveis do Brasil.
Há palavras capazes de mudar uma vida. Também se poderia dizer, com mais razão ainda, que há confissões que mudam uma amizade. Assim como a rocha equilibrada no flanco da montanha, a chispa que cai na capoeira seca da floresta, o esporo que vai destruir a colheita da batata, o grão de escrúpulo que impede o homem de ousar, ou o grau de obsessão que faz filósofos ou idiotas, uma pequena causa pode gerar efeitos desproporcionalmente grandes. Talvez seja exagerado afirmar que uma palavra mal colocada pode lançar o mundo na guerra, mas ninguém há de negar que há situações extremamente dependentes em relação às condições iniciais ― e é aí que uma gota vira onda. Rafael e Pedro se conhecem desde antes do que a memória de ambos alcança, a começar por terem nascido em famílias unidas por laços de antiga amizade, com diferença de três meses, na mesma maternidade e pelas mãos do mesmo obstetra. De tudo na vida partilharam: a escola, os companheiros, as esbórnias, os primeiros namoros, a segunda falência, etc.; a única separação que conheceram foi na escolha profissional, quando Rafael se tornou politécnico e Pedro iniciou o curso (que nunca terminou) de História.
A amizade entre ambos, que tomam por um fenômeno natural entre outros, está para ser testada no decorrer de uma conversa banal em função de uma observação absolutamente anódina. Rafael aconselhava Pedro acerca da sua mania de reclamar ostensivamente dos garçons. A piada interna de Rafael quando o amigo pedia um café era dizer-lhe para pedir logo dois, uma vez que o primeiro fatalmente voltaria por estar frio, ou por isto, ou por aquilo, ou apenas pelo puro hábito de rezingar.
― Nunca vi um cara mais fresco do que você. Mas esse workshop do segmento de bares e restaurantes que acabei de fazer me tirou todas as dúvidas: não se pode chatear o atendente que realiza uma tarefa longe do olhar do cliente.
― Que é que você quer? Não posso diminuir meus padrões de qualidade, se você é gourmand, ou ex-gourmand se preferir, e eu sou o gourmet... ― de fato, Pedro sorvia sua cerveja preta como se fosse um licor, ao passo que o outro tinha modos de viking até para encher de ovas de esturjão uma simples torrada.
― Pois então, senhor gourmet, saiba que você é um apreciador contumaz e involuntário do que garçons e maîtres apelidaram de Molho Especial. O nome completo é: Molho Especial Para Clientes Malas; deixe a sua imaginação gastronômica se deliciar com tudo que um funcionário humilhado publicamente pode lhe ofertar em privado: secreção nasal, cuspe, sola de sapato, secreções da acne, suor do peito, da bunda, exsudato de furúnculo...
― Pára, pára... gulp, que nojo! Eu não humilho ninguém, e depois, tem que se aceitar tudo, é? ― Pedro acabava de se arrepender da porção que encomendara há instantes.
Rafael considerava os bolinhos de bacalhau recém chegados com a melancolia de quem sabia que não poderia atacar mais do que dois deles; tinha de se contentar com porções ridículas desde que seu estômago fora reduzido ao tamanho de um porta-moedas e deixara de desembocar no duodeno para fazê-lo mais abaixo no intestino delgado. ― Olha, mandar voltar, pedir mais isto, menos aquilo, apurar o ponto... tudo isso é do jogo, onde você extrapola é no piti, no esporro ostensivo. E aí não tem perdão: Molho Especial na certa. Calculo uma incidência de 97% desse tempero em clientes com o seu perfil estressadinho.
― Rafael Afonso, meu querido, você tem o dom de ser disgusting; afirmo, sem medo de exagerar, que você elevou o grotesco ao nível de uma arte.
― É possível, mas nunca confie no que um homem faz quando ninguém sabe o que ele está fazendo; deixado a si mesmo o ser humano... ― Interrompeu-se, as palavras pareciam entrar em brasa viva nos ouvidos do outro. O silêncio imediato e a mudez subseqüente do amigo produziram nele uma impressão esquisita, como a passagem de um fantasma. Uma conhecida que passeava com uma criança pequena chamou a atenção de ambos e proporcionou a manobra diversionista que Rafael precisava para afastar o hiato constrangedor. Não podia deixar seu parceiro naquele ânimo sorumbático sabendo que o cacife da rodada de bridge, contra recente norma baixada no clube, valeria mil reais. ― Lembra dela?
― Claro que sim, é a Carlinha, sua namorada na 7ª B. Mas... por que você disse isso?...
― Por quê? Ora essa, porque ela me traz boas lembranças...
― Não tô me referindo a ela, Pedro Bó, tô falando daquele negócio do que as pessoas fazem quando ninguém vê!
― Não te parece óbvio? Ninguém é confiável quando não há ninguém vigiando, são os becos escuros da alma, queridão ― Rafael tentou encerrar o assunto com uma espetada certeira numa azeitona, que resvalou teimosamente pela travessa. ― Já sobre a Carlinha tenho uma instrutiva passagem para contar: dez anos faz que a reencontrei na mercearia do Jockey. Ela ainda não tinha essa neta, mas já tinha se separado, ou melhor, o marido já tinha se mudado para a casa da estagiária da empresa... Daí que a encontro, já recuperada do trauma, sarada, siliconada, bronzeada e tal... papo vai, papo vem, marcamos um jantar. Veja, na época em que namoramos... milhentos anos atrás éramos adolescentes, não rolou nada... uns beijinhos e tal e coisa, muito tesão e pouca ação, né? Mas agora a coisa era diferente, dava pra tirar a limpo, resgatar uma dúvida histórica, no gênero “como teria sido se”...
― Entendo: um revival 40 anos e 80 quilos depois. Ao menos no seu caso...
― Lindo, vou desconsiderar a maldade gratuita embutida em suas palavras e pular uma descrição grosseira da maravilhosa noite de amor que tivemos, apesar das dez arrobas que este galã possuía então. Pois fique sabendo que ela me confessou no pós coito que eu estava no topo da lista dos homens que ela sempre quis conhecer biblicamente, por assim dizer...
― Perva!...
― E aí me animei, falei que queria sair com ela de novo no fim de semana. Mas ela disse que não podia.
― Como assim, recusava a felicidade carnal a recém-Messalina?
― Ao contrário, respondeu-me na maior candura e caradura: “falei que você estava no topo, mas, e o resto da lista?”