― Tenta mesmo assim, nada sobre você pode me surpreender ― não era verdade; naquele exato instante, sentia-me, sim, surpreso em descobrir que não estava apaixonado por ela (e nem ela por mim); o que me aguilhoava era curiosidade, com largas doses de gratidão.
― Tudo começou há dois anos, a gente pensando em parar a banda, repensar a carreira, quando um empresário nigeriano, Mr. K, veio falar com a gente depois de uma canja no Studio SP...
― Hmm, daí que veio o link com...
― Deixa eu terminar... o Mr. K passou a lábia em nós, quando vimos, estávamos no avião, fazendo pinga-pinga no continente... só fomos descer no Malaui, daí, mano, horas, dias, dentro de umas lotações sinistras, que eles chamam de candongas, até chegar na tribo do maior xamã africano vivo: Kalelwa Obalasanje. Naquela noite teve festa na cubata, deram umas bebidas fermentadas pra nós, umas paradas bem esquisitas... caímos no baticum da galera, mano, entrei numa gira bem lôca...
― Peraí, cê não tá me dizendo que, então, você virou uma poderosa xamã e, com um único beijo, fez o que dez anos de análise, tarjas-pretas, yoga, vegetarianismo, eletrochoques, magnetoterapia e três tentativas de suicídio, não puderam fazer por mim?...
― Escuta...
― Ah, e detalhe: estou bem há cinco meses seguidos, isso nunca tinha me acontecido desde...
― Você quer me escutar até o fim? Bom, não é que eu tenha virado feiticeira, mas é que fomos iniciados pelo Obalasanje... uma honra muito grande, na verdade, é uma espécie de dom, que o Mr. K detectou na gente logo de cara...
― ... e que, com certeza, não era o dom musical!
― Quer parar? Saco! Olha, eu nem devia estar contando isso para você, pode ser perigoso se você der com a língua nos dentes...
― Certo, estou começando a achar que caí nas garras da máfia africana, aquela que vai desbancar a yakuza e a máfia russa.
― Você ainda brinca? Pois é disso mesmo que se trata, tem uma galera ganhando um bom dinheiro com isso... cara, não fica magoado comigo, de certa forma, foi você que pediu para isso acontecer.
― Isso o quê? Fala logo, até parece que você me roubou um rim...
Uma expressão de puro pavor atravessou o rosto dela por meio segundo; afastou o copo, como se contivesse a bebida mais amarga de todas. ― Você já ouviu falar em ngangas? Não?, pois foi nisso que me transformei, os ngangas são responsáveis por manter o mundo dos mortos e dos vivos em equilíbrio, sem eles, os vivos se esquecem do aqui e agora, e os mortos retornam do além-túmulo...
― Ok, digamos que você trabalhe na portaria da casa do capeta, mas, e daí?
― Daí que, quando nos beijamos, eu suguei a sua alma.
― Cruz-credo, pé de pato, mangalô três vezes! Como assim, sugou a minha alma?! O que é que é isso, tá me zoando, mina?
― Não, não estou. Entenda, isso não pode ser feito com qualquer um, precisa a alma querer sair do corpo... quando bati os olhos em você, senti logo toda a enorme escuridão da sua vida, o sofrimento todo que você carrega, a vontade que havia em você de começar de novo... enfim, você já estava cansado de carregar seu próprio fardo, e resolvi ajudar.
― É mole uma conversa dessas? Simples assim: você vem, faz um boquete espiritual, some no mundo, e estou curado; é perfeito demais, um tratamento gratuito e indolor. Mas, e não vai me fazer falta, digo, andar por aí sem a minha alma velha de guerra? Devo evitar espelhos e a luz do sol, agora que perdi a sombra?
― Deixa de ser bobaldo; fica sussa, dá pra viver perfeitamente sem alma nos dias de hoje, repara em volta: milhões de zumbis indo e voltando do trabalho, comendo, trepando, enchendo o planeta de lixo, se matando uns aos outros... quem repara se mais um ou menos um está meio desligado, vivendo por viver?
― Hmm, não tem mesmo nenhum efeito colateral?...
― Bom, você não vai mais conseguir se apaixonar por ninguém, mas também... já era assim antes, não é? É como se tivessem compactado as tuas emoções num equalizador, nem picos de paixão, nem vales de melancolia, nem expectativas ilusórias, nem amargas decepções; fala a verdade: há muito você sonhava com isso.
― Verdade. Agora, e o que vocês fazem com essas almas roubadas?
― Alto lá, não fui eu que roubei sua alma, foi ela que pediu pra sair... nas turnês, vamos ficando lotados de almas dentro da gente, então, voltamos para o Obalasanje que as retira e depois comercializa; você não imagina o quanto tem de gringo desalmado neste mundo que está disposto a pagar uma bala para poder voltar a sentir alguma coisa. Mesmo que seja sofrimento.
― E se eu quiser ir até lá e recuperara a minha alma?
― Entenda isso, bro, você não é rico e cheio da nota, você é um classe média mal remediado; se tu cai nas mãos dos caras errados nesse meio, fodeu, vai se tornar doador involuntário de órgãos...
― Mas, e você, tá fazendo uma grana nisso, não?
― Tipo, é verdade que sempre quis desenvolver algum dom especial em mim, e o Mr. K me ganhou com esse lero, mas também tenho que pensar no futuro. Você sabe, viver de música neste país...
2 comentários:
Caro Missosso,
Gostei!!
Bela história!
abs
mandou bem
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