sábado, 30 de maio de 2009

não se pode amar e ser feliz ao mesmo tempo





Querida Valentina,

Se você está lendo estas linhas, então já sabe que traí miseravelmente a sua confiança e estou respondendo, talvez da pior forma possível, ao que me disse em nossa última conversa. Pese a meu favor o fato de a haver prevenido que faria de você personagem de uma história que ainda não escrevi, e que talvez nunca escreva, como tantas outras coisas que lhe prometi sem saber se poderia cumprir. Você sempre soube no fundo que isto tinha o potencial de vazar para além dos muros da nossa intimidade singularíssima; da sua parte, espero apenas o perdão, da minha, ofereço o mais candente esforço e sinceridade de que sou capaz. Não sei dizer o que para mim foi pior no seu desabafo: ser atualizado nas indignas/heróicas viravoltas da sua relação obsessiva com o Mr. M., ou escutar o horrendo adjetivo que você se autoaplicou: “migalheira”. Mulher migalheira, como tantas outras que há por aí, foi o que você disse. Arrepiante, preocupante mesmo, a ocorrência de dois absurdos na mesma frase: nem você é igual a tantas ou poucas que por aí andam, nem, o que é muito mais importante, se trata de migalhas, mas do exato oposto essa sua história com M.! É humilhante demais. Mandando às favas o meu orgulho, tenho que lhe dizer, a bem da verdade, que esse seu namoro porno-sado-masô é o sideral oposto do pedaço, da migalha, é, antes, sinal de uma imensa fome de absoluto, de um desejo de transcendência descontrolado; o que vocês vivem dista anos-luz do trivial, é uma ligação tão incomum e rara na intensidade que consome tudo à sua volta. Até a capacidade de auto-ironia, até a sua tão preciosa saúde, minha querida. Sei do que estou falando porque escrever é viver essa mesma oximorosa condição: eu sento aqui diante da folha em branco e acredito que me sento à mesa dos deuses, dos anjos, dos reis, mas acabo a noite de quatro, como um vira-lata, a disputar com os sabujos dos empíreos os restos corrompidos que caíram da mesa onde circulava a ambrosia e o hidromel. Não pense que me escapam as contradições em que vou incorrendo ― não estou preocupado com a coerência, estou preocupado com você ―, cara mia, ter a honra de conviver na época de uma grande mulher é ser testemunha histórica de um colossal, maravilhoso, equívoco de carne e osso. Eu sou o seu espião. Você me convidou a isso, como fez de M. um hacker psicossexual entregando-lhe cegamente todas as senhas do corpo e da alma. Ah, como gostaria de vociferar em prosa chula a pusilanimidade dele ― um homem que não tem a coragem de amar a mulher que deveras ama; mas sei, por experiência própria, que a servidão que lhe assujeita agora é a pior de todas: aquela que faz parte do próprio sangue, a que faz de nós aquilo que somos num deslugar noturno do ser. A verdade é que M. usa com habilidade um segredinho sujo do malestar civilizadinho, a verdade é que apesar de termos feito tudo o que fizemos, ainda, no jogo do amor, um homem “vale” mais que uma mulher, mesmo sendo um homenzinho cagalhão e looser, mesmo sendo um alumbramento de mulher como Valentina. São as malditas, hipócritas, escrotas regras do jogo social de ontem, hoje e sempre, que garantem que uns lucram, outros são lesados e todos perdem, porque sobre a primeira expropriação se apóiam todas as outras, porque uma dominação engendra a outra, porque, enfim, uma sociedade de libertos seria uma grande ameaça para a estabilidade da globalização, da contemporaneidade ciniquinha e limpinha. E também porque, amiga, apesar de o mundo ser o que é, não podemos simplesmente aceitá-lo pelo valor de face, como não posso simplesmente deixar de sofrer ao vê-la vivendo na pele dessa heroína às avessas, essa identidade secreta, espécie de existência paralela feita de espera vã e epifanias aflitas. Sim, você ouviu bem, eu lhe disse que essa intimidade é tóxica, voragenta; você piscou para o abismo e ele lhe escancarou a goela puante, as insaciáveis fauces. Valentina, darling, pode ser que a vida não seja nada disso que estou lhe dizendo, não me ouça, não lembre das minhas palavras, mas por favor não desista da sua beleza, da indomável liberdade que há nos seus cabelos, nunca deixe de visitar os jardins do mundo delirante onde vivem os Predicados e as Essências, onde tantas vezes adivinhamos os passos um do outro a correr nas caminheiras. Não se pode amar e ser feliz ao mesmo tempo, vero, mas não se pode viver sem um sonho assim.
Bjs,

sexta-feira, 22 de maio de 2009

Cinzel Sobre Sonhos, Escultura



Escultor, bato a ferro a pedra da minha vida.

Meu caminho, instintivamente, sempre foi o mais difícil, o lado mais íngreme, o lado escuro de qualquer astro. Não sirvo de exemplo nem para o meu filho, para quem sempre quis uma vida menos dura. Em vão. Lá foi ele, à esquerda na vida, sem entender o que se passa no mundo que não se passa dentro dele. Eu nunca soube fazer de outro jeito. Azar.

Saturno, ao me reger, prometeu o pote de ouro no fim do arco-íris de chumbo; fica assim a recompensa a quem se dedica ao bruto esporte de viver a vida e suas escolhas de um modo que ninguém conhece. Descobrimos que não amamos as mulheres superficiais, mas isso apenas depois de as abraçarmos. Descobrimos que a música que queremos fazer não existe, e quanto à nossa banda, provavelmente apenas o fã-clube da Bulgária será um pouquinho mais expressivo. Nosso pagamento será de tapinhas nas costas e abraços calorosos entre quatro ou cinco iniciados.

É saber, enfim, que a vida valeu muito e que não existia outro caminho, e que a coragem de ter sonhado com um enorme e vistoso lírio branco (e com aquele carrinho que parecia um bizarro carrinho de golfe, cuspindo flores para todos os lados) não era na verdade coragem de amar e ser amado por aquela mulher como ninguém mais o faria, mas a única trilha visível numa bruma que não permitia ver mais que meus próprios passos, mesmo que a dois dedos da morte e do inferno onde muitas vezes caí.

Até agora me ralei um tanto, mas até que foi divertido. Às vezes.

quinta-feira, 21 de maio de 2009

a paixão carambola os substantivos com os adjetivos


a má arte
(cedo ou tarde)
se revela
arte do mal

a poesia não precisa
ser justa
sincera ou veraz
não precisa nem ser boa

porque a arte
coitada
não é boa, má
nem coitada

nós
somos maus e bons
em variável indeterminada
razão

amar é tão
difícil
quanto a maldade
é simples

sou apenas um peixe
estouvado
uma partícula de tempo
uma pequena coisa doendo

na multidão

terça-feira, 19 de maio de 2009

I feira de saude mental e economia solidaria

“A necessidade de inclusão de produção da vida material pelo trabalho é um aspecto fundamental das relações sociais e diz respeito aos direitos de cidadão dos usuários dos serviços de saúde mental” (Desafios para a desinstitucionalização: censo psicossocial dos moradores em hospitais psquiátricos do Estado de São Paulo. Secretaria Estadual de Sáude/SP).
No dia 23 de Maio (sábado), como parte da Semana da Luta Antimanicomial, a Rede de Saúde Mental e Economia Solidária do Estado de São Paulo irá realizar a I Feira de Saúde Mental e Economia Solidária.
A I Feira de Saúde Mental e ECOSOL tem como objetivo ser um espaço de sociabilidade, exposição e comercialização de produtos e serviços dos projetos de trabalho e renda e empreendimentos econômicos e solidários, dos trabalhadores e trabalhadoras, usuários da Rede de Saúde Mental do Estado de São Paulo. A I Feira contará com a comercialização de produtos de 25 projetos de trabalho e renda de diversas cidades do Estado de São Paulo.
A I Feira contará também com diversas apresentações culturais e a IV Parada do Orgulho Louco, visando um dialogo com o conjunto da sociedade para mostrar as potencialidades criativas e produtivas dos usuários da Rede de Saúde Mental.
Programação da I Feira de Saúde Mental e ECOSOL:
12:00 - concentração da IV Parada do Orgulho Louco – informações sobre o local na página eletrônica
13:00 - Chegada da Parada do Orgulho Louco na Feira - início
13:30 às 13:30 - música (dj tiago)
13:30 - Ato de Lançamento da Moeda Social Qualquer e fechamento do Ato com o Cordão Bibitantã
14:45 - música e microfone aberto
15:00 - Luis Groove (banda de jazz)
16:00 - DJ Nene
17:30 - dança cigana
18:00 - Ala loucos pela X
18:40 até o final - música (dj tiago)

Maiores Informações: http://saudeecosol.wordpress.com/

Apoios: Conselho Regional de Psicologia-SP, Secretária Estadual de Saúde, Escola de Enfermagem-USP, Associação Franco Basaglia, Associação Vida em Ação e Fórum Paulista de Economia Solidária.

Endereço: Rua Dr. Enéas de Carvalho Aguiar, 419 ( Escola de Enfermagem da USP - ao lado do Metrô Clínicas)

domingo, 17 de maio de 2009

Também se recolhem os cacos da sombra que voa

Sem título, óleo sobre tela, Bel Teixeira 2008.

A sombra de um grito a correr, um grito
cheio de rachaduras na pele da noite lembrada.
Uma noite corria ao longo de janelas sonoras,
imediatas,
levando na sela, abertos como ela,
lenços.

Muito vivos, grandiosos, brancos, atados
a cascos céleres, correndo como sombras
que discordam da forma
como as coisas devem ser,
ou estar, com as patas na mesa da fantasia

noturna.

E são mulheres ou lenços, mulheres de corrida, mulheres-sonho
pousadas
ao abrigo da terra, como uma estrela
pousaria na sombra,
tremendo como as estrelas tremem na escuridão,
ante o poder extraordinário
que há em serem ditas.

O céu está a galope por cima
e elas passam esquecidas, angustiadas
com a noite esquecida/lembrada,
mas que logo, logo, volta a
correr, porque faz parte do desejo das sombras
correr,
correr como os lenços brancos das estrelas
― velas que se apagam à passagem
dos imateriais.

Eu lembro:
os gritos queimam,
como as éguas e suas crinas queimam,
assim como a aragem da noite-água
viva,
aberta, correndo, lembrando.

O miolo da fechadura guarda um segredo,
da palavra pode-se voltar a fazer imagens;
no centro da tormenta
dorme o silêncio.
Às vezes, nossa pessoa cresce a tal ponto
que é engolida pelos seus
ecos.

sexta-feira, 15 de maio de 2009

Mulher com cigarro, técnica mista


bebi raízes

na carne da montanha

dormi

despido por lençóis d’água

envernizado

na tua sala de estar-mogno

não sou de louça!

não tenho margem de manobra

não tenho quadris, nuca, nádegas

nem clarão fugitivo por onde o sentimento siga no encalço

minha cabeça de edemas

agudos

minha face bolachuda de angosturas

kármicas

sete perguntas quem era

sereia, sirene, verbena

veneris die

simultaneamente doce

instantaneamente morno

entregue às margens que estavam ali

enlaçadas ao vislumbre

da sarça ardente

ao corpo mal contado

e narrativo

ao menos deixa

ao menos por hoje

deitar

na cozinha da tua alma

quarta-feira, 13 de maio de 2009

papel aceita tudo

à Tatiana Mayer (in memorian)

segunda-feira, 11 de maio de 2009

transformei meu amor em noite para te dar as estrelas

Ilustração: Thiago Boemeke

No amor, a multiplicação do nada: dar o que não se tem

Receber do outro o milagre que ele(a) nunca pôde haver

E, neste comércio de impossíveis, construir o mais louco dos paraísos

Quando jovem corria para o abismo, mesmo porque a neblina me cegava

Hoje, caviloso, poupo moedas para a velhice, sentindo que abraço nuvens

Ando às escuras, bem sei

quinta-feira, 7 de maio de 2009

Sonho: O lado escuro do caminho


Eu ando pelo caminho escuro. Ando por seu solo imperfeito, suas manchas esverdeadas, seu piso como tijolos muito gastos pelo tempo. Sua noite particular.

Eu ando pelo caminho do lado escuro, separado dos caminhos comuns que todos trilham, que sai deles e volta, como um atalho que ninguém vê. Eu evito os acidentes que não conheço, fico com medo de pisar em algo estranho ou nojento, mas não paro. Nele é difícil prosseguir, e às vezes acho que andei, mas estou no mesmo lugar. Minha respiração torna-se tão pesada que chega a parar. Angústia. Num susto, volto a respirar.

Eu ando pelo caminho à parte, que tem silêncio, onde a luz diminui, que os outros não conhecem. Temo, mas ao mesmo tempo vou com confiança, pois também é meu. Volto por ele ao lugar já conhecido de onde saí. Mas não sei quanto de mim ficou.